Deseconomias
Susana Peralta, uma conhecida deseconomista*, escandaliza-se aqui com a intenção de algumas empresas cotadas, incluindo EDP e Galp, manterem a intenção de pagar os dividendos relativos a 2019.
As razões dela?
“Quando trabalhadores e pequenos empresários perdem tanto (muitos quase tudo!), pagar dividendos é um rastilho para a raiva política”.
Não me custa a crer, faz todo o sentido. E como essa raiva só pode ter tradução política na adesão a partidos anticapitalistas, igualitaristas e economicamente analfabetos, isto é o mesmo que dizer que os senhores accionistas (e sobretudo os gestores mancomunados com o que chamam de accionistas de referência, que são quem decide estas coisas) estão a dar ao PCP e ao Bloco a corda com que se podem enforcar.
Porém: os accionistas que compraram as acções com as suas poupanças (isto é, excluindo as que foram adquiridas dentro de pacotes de prémios de gestão) deixaram de investir em aplicações alternativas que geram rendimento, por exemplo imóveis. E portanto a discriminação que legalmente se pretende impor passa para o mercado a seguinte mensagem: o investimento em acções acrescenta ao risco da desvalorização e do abuso dos gestores o risco administrativo, porque crises a reclamar a intervenção do Estado nunca faltaram nem vão faltar. Não está mal visto – para quem achar que o mercado bolsista é apenas um casino.
“É também provavelmente uma decisão estúpida para a própria saúde financeira das empresas, que podem estar a gastar agora em dividendos recursos que lhes farão falta daqui a uns meses”.
Talvez. Mas quem avalia o risco para a saúde financeira das empresas são precisamente os gestores e os accionistas. Não faltam exemplos de uns e outros que avaliaram mal, mas por que carga de água uma teórica, ou um grupo deles, sentados nas suas cátedras, ou um secretário de Estado qualquer, terá mais lucidez do que quem arrisca o que lhe pertence, a autora não explica. Nem pode porque a verdadeira explicação é esta: quem sabe faz e quem não sabe ensina.
“… A primeira é que o Governo iniba as empresas que recebam apoios no contexto desta crise de distribuir lucros e pagar prémios de desempenho”.
Ahahah, aqui é que a coisa fica cómica: porque não apenas concordo como eliminaria a expressão “no contexto desta crise”. Todas as empresas que recebam apoios do Estado, seja sob que forma for, seja qual for o pretexto, seja quando for, devem, enquanto o apoio não se extinguir, não apenas estar proibidas de distribuir lucros ou prémios como inibidas de pagar salários dos gestores acima de um certo limite. E nem é preciso inventar legislação: basta copiar, com uns pequenos retoques, e ainda com a vantagem suplementar de o texto já estar em bom português, ao contrário do que sucede com boa parte da actual.
Claro está que neste ponto não faltará quem diga: e então os subsídios da EU para formação profissional ou investimento, quem os quererá com estas limitações? Que isso não dê cuidado a quem tenha essas preocupações ꟷ haverá sempre mais gente a querer dinheiro dado do que dinheiro para dar.
“Mas isso quer dizer que há rendas, que é como quem diz: a remuneração do capital e dos conselhos de administração [da EDP e da Galp] é superior àquela que lhes cabe como retorno justo da sua produtividade. Portanto, é evidente que há espaço para aumentar os impostos sobre os lucros destas grandes empresas e sobre as remunerações dos seus acionistas e quadros dirigentes, sem que isso tenha um custo económico. Quero dizer: impostos que recaem sobre rendimentos que são rendas desincentivam as ditas rendas, mas não desincentivam a atividade económica”.
Fantástico raciocínio: A EDP e a GALP são rentistas, isto é, abusam da sua posição dominante para prejudicar os consumidores. E portanto a solução não é fomentar a concorrência, será torpedear a igualdade dos cidadãos perante a lei, criando regimes especiais de impostos para gestores e accionistas daquelas duas empresas. Do efeito que isto teria na valorização das acções, e em futuros reforços de capital e capacidade de investimento, para não falar dos mil e um subterfúgios que os gestores inventariam para se porem ao abrigo do esbulho, Susana não cuida.
“Deve ser difícil de acreditar, mas os Conselhos de Administração dos bancos praticamente não diminuíram os dividendos nos primeiros 15 meses da pior crise desde a Grande Depressão’. Afinal, a pior crise afinal ainda estava para vir e estamos agora mergulhados nela. Parece que os reguladores dos bancos puseram a incredulidade de parte e proibiram estes comportamentos irresponsáveis. E para as empresas não financeiras? Vamos ter de esperar até à próxima crise?”
O divórcio entre a propriedade e a gestão dos bancos era um evidente conflito de interesses sob a aparência de um fim comum. Mas a ideia de que os bancos são empresas iguais às outras, e que portanto o que vale para eles deveria valer para elas, é uma ideia pueril: não apenas quanto às empresas não há riscos sistémicos do mesmo grau como, na realidade, os bancos a trabalhar em Portugal são hoje balcões do BCE sob a supervisão burocrática e acéfala de uma agência do mesmo Banco, que por tradição conserva a designação de Banco de Portugal. A brilhante gestão do país já conseguiu destruir o sector bancário nacional, cujos accionistas perderam quase tudo, mesmo que muitos gestores não tenham perdido o suficiente ou nada. Seria da mais elementar prudência não misturar alhos com bugalhos.
Bem sei que a autora, como qualquer dos seus colegas, estará convencida que não teria problemas de maior em gerir um banco, ou a EDP, ou um minimercado. Quanto a bancos, estou certo que sim; quanto à EDP também, desde que os seus conselhos de agora não fossem seguidos; e quanto ao minimercado idem, com a condição de esquecer o que julga saber.
*Por deseconomista, palavra que incompreensivelmente ainda não se encontra acolhida nos dicionários, entende-se aquele economista que acha que a planificação pode substituir o mercado, que a desigualdade económica não é necessária no processo de criação de riqueza e que o direito de propriedade é apenas uma construção jurídica; o mesmo que economista de esquerda.