Escrevi, com tamanho repúdio que até repulsa, sobre a exposição "Desconstruir o Colonialismo. Descontruir o Imaginário". É uma espécie de "pôr a cabeça no cepo" pois são cerca de 50 autores envolvidos, e todos tenderão a defender o seu objecto. Gente graduada e qualificada, desde a sua Comissão Executiva, encabeçada pela prestigiada historiadora Isabel Castro Henriques, a uma vasta Comissão Científica - da qual, como exemplo, saliento a investigadora da faculdade de Medicina Isabel do Carmo, que assim descubro especialista da história colonial portuguesa, presumo que nas suas áreas de referência Endocrinologia, Diabetes e Nutrição - ainda que estes assuntos não sejam abordados na exposição, nem nem tão pouco as questões da velha "Medicina Tropical". Juntos a um farto enquadramento institucional, o ISEG, o Ministério da Cultura através do Museu Nacional de Etnologia e a Comissão Comemorativa dos 50 Anos do 25 de Abril. Para além de um poderoso rol de patrocinadores: Gulbenkian, FCT, FLAD, Comissão Nacional da UNESCO, UCCLA, ISEG, Universidade de Lisboa...
"Zezé, queres pedir um financiamento para algum projecto?", logo disparou um amigo ao ler-me, provocando um unânime coro de sonoras gargalhadas entre os que nos rodeavam!
Tendo transcrito o postal no meu mural de Facebook aí recebi pedidos de melhores esclarecimentos, provenientes de duas investigadoras estrangeiras - uma norueguesa, outra brasileira - que fizeram longas pesquisas em Moçambique. Presumindo que elas não visitarão a exposição - apesar de estar programada a sua permanência no Museu de Etnologia durante um ano e de estar anunciada a sua itinerância -, respondi-lhes esmiuçando as causas do meu profundo desagrado com esta iniciativa estatal. Nisso alonguei-me nos argumentos e apresentei detalhes ilustrativos. Coloco-os aqui, retocados:
1. "Desconstruir (o jargão obrigatório) o Colonialismo"? "Descolonizar o Imaginário"? É normal, salutar, que durante as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e das independências das antigas colónias, se regresse a essa temática. Se celebre o fim do anacrónico império, se dissequem as suas características. Deixo ligação a um postal meu, "Passado Colonial", escrito há meses irritado com um conjunto de dislates que uma antropóloga vinda dos EUA para disseminou na Gulbenkian entre os professores do ensino secundário. Ou seja, não trato de fazer a apologia do colonialismo, nem a sua higienização. Mas refuto o aldrabismo como ideologia do agit-prop académico.
(Painel com o rol de patrocinadores da exposição)
2. Como logo referi o problema não é o catálogo. Este contém 30 textos, decerto que desiguais, que apenas acompanham. Autores haverá que se defenderão dizendo que o conteúdos dos seus breves textos (cerca de 5 páginas cada) serão mais equilibrados do que os resumos expostos, e que também sofrerão a exiguidade de espaço textual disponível para resumirem as suas longas e complexas reflexões sobre matérias dos quais são especialistas. Poderão até - admito como hipótese - afirmar que as resenhas afixadas algo deturpam os seus textos. Serão "explicações" impertinentes. Pois o que conta é o conteúdo da exposição, o que é divulgado e "patente ao público" (e estará durante um ano). E que eles subscrevem, na sua totalidade.
Mas mais ainda, e também o referi, o problema fundamental não é a pobre execução do objecto-exposição físico. Ainda que seja pertinente questionar as razões daquilo. O Museu tem orçamento para actividades. E o rol de patrocinadores é enorme. O que aconteceu para os painéis (ou estandartes, se se quiser) serem tão descuidados? Não falo do catálogo, pois esse apenas acompanha (não tem grande impressão mas escapa). O que aconteceu na produção? Quais os critérios para a sua adjudicação?
Pois a impressão dos painéis é descuidada, deixando-os de imagens pouco perceptíveis ou mesmo imperceptíveis. E a revisão, por superficial que fosse, aparenta ter inexistido. Por exemplo, esta fotografia de um grupo de mulheres em São Tomé no início de XX aparece em três diferentes painéis com erros crassos de atribuição (neste como "grupo de funcionários superiores da companhia de Moçambique, na Beira", noutro como "residência do administrador de Ribaué"). E, em termos textuais, é notável que o ror de académicos prestigiados subscreva uma exposição desta temática que informa, e o repete, que a independência da Guiné-Bissau foi unilateralmente proclamada em ... 1974.
3. A esta pobreza "física" já associei a pobreza conceptual da exposição, apenas aqui recordo o anacronismo de consociar uma vasta dissertação textual sobre o colonialismo português a um conjunto de peças, como se de bric-a-brac, uma deriva oitocentista para ser simpático. Pensando que assim aos "africanos", "colonizados", se faz "falar" através dos seus artefactos. Como se o "imaginário" lisboeta, e dos seus arredores, se desconstrua com aquele "artesanato", como se os colonizados sejam a máscara mapiko, a peça de Reinata - para quem não conheça deixo um texto meu sobre ela. E aquelas restantes peças avulsas..., num efectivo potlatch de primitivismo serôdio.
4. O relevante nem sequer é o tema do enquadramento e funções requeridas ao Museu Nacional de Etnologia. Mas sim como esta exposição demonstra ser o contexto político nacional determinante intelectualmente na actividade de núcleos da academia portuguesa, em especial nestas áreas da história colonial. Convocando os profissionais para produzirem - ou se associarem, placidamente - discursos tão politicamente empenhados que panfletários, tudo a coberto do "simbólico" científico e institucional. Isto exemplifica-se com um dos últimos painéis que sumariza o fundo ideológico e o objectivo político desta tarefa. Enceta por um indiscutido "Na sociedade portuguesa, que se caracteriza por um racismo sistémico..." e segue num pedagogismo empenhado "Torna-se necessário proceder à alteração da forma de pensar o passado colonial para que, através da descolonização das mentes, se possa combater o racismo de forma mais eficaz.". Será que as pessoas não percebem o atrevimento - a "lata", em calão - na produção estatal de textos destes?
É evidente que estes panfletos académicos, sob blindagem "académica", têm repercussão em alguma imprensa "gauchiste" de implantação nacional, e também para isso são produzidos. Em última análise, servem para os minoritários partidos de extracção comunista conduzirem a forma actual ("decolonial", peroram) de "luta de classes", a "luta de "etnias" e "raças", como agora se estipula. É a actividade dos "intelectuais orgânicos" e dos "publicistas" para transformarem a "etnia"/"raça"-em si em "etnia"/"raça"-para si. De facto, é isto este projecto de "Descolonização do Imaginário"... Com a história colonial portuguesa tendo como corolário a manifestação a propósito da morte de um cidadão norte-americano, convocada por grupos de extrema-esquerda, então mais ou menos na órbita do partido LIVRE.
5. Mais do que tudo, "Descolonizar o Imaginário" pode e deve começar por perceber que é uma falsidade o que estes intelectuais apregoam, que a sociedade portuguesa vive como um reflexo deste império, que estes cinquenta anos de democracia (grosso modo o equivalente ao tempo de efectivo colonialismo em África) mantiveram intactas as representações sociais, as mundividências portuguesas (ou, mais ainda, as existentes em Portugal). Ou seja, que o "imaginário" actual é similar, reflexo simples, do pretérito. Refracta o passado, claro. Mas não da forma mecanicista que esta exposição - e tanta propaganda política - o diz. (Por outras palavras, se há décadas vigorava o "marxismo" vulgar, mecanicista, agora vigora o "identitarismo" mecanicista, simplório).
E ainda mais, se é para "Descolonizar o Imaginário" então também será o âmbito de o fazer em relação aos imaginários africanos, sair do facilitismo dos registos que vigoram sobre a época, convocando as múltiplas leituras do colonialismo que então existiam. Implica isso menosprezar as palavras de Amílcar Cabral (evocado na exposição) ou de Mário Pinto de Andrade (que é ouvido na exposição)? Não. Mas qual a razão de não se ouvir/ler, por exemplo, Domingos Arouca? Ou ouvir, analisar, as múltiplas considerações de então e posteriores sobre o regime colonial? Estou a fazer a apologia do colonialismo? Ou estou a dizer que se trata de uma exposição no Museu Nacional de Etnologia, um trabalho congregando dezenas de académicos, no 50º aniversário do fim do regime colonial? Isso sim, seria dissecar as representações que temos sobre as múltiplas realidades coloniais, fazendo-as dialogar com discursos variados - e não com o panegírico de algumas, orlado com "arte" bonita.
6. Para além de outras dimensões criticáveis a exposição tem, na sua parte textual, dois grandes problemas. Que passarão despercebidos - e isso é o pior - ao "grande público", àqueles que desconhecem as temáticas. Mas reconhecer esses problemas reclama a vontade do espectador. Ou seja, são subjectivos. Um é a incompetência intelectual - que para ser reconhecida exige uma "dessacralização" textual, um afastamento de um texto afixado numa instituição museológica que vem com autoria de dezenas de "Senhores Professores". Quantos de nós, vulgares de Lineu, interrogaremos aquilo?
Começo por aquilo que digo incompetência. Vários painéis atacam o "luso-tropicalismo", fazendo-o de modo básico e esquecendo as constituintes históricas da composição desse ideário, bem como sobrevalorizando-o, até contraditoriamente. Numa dessas investidas escreve-se "Em Lourenço Marques ... os jovens sentiam-se parte dessa "terra nova", apesar de serem brancos, negros, indianos ou mestiços - ou tudo ao mesmo tempo, como a mais brilhante poetisa do tempo, Noémia de Sousa. Como resposta, em Lisboa, a assustada elite colonial inventou o "luso-tropicalismo"...".
Sobre isto eu vou ser um pouco egocêntrico, até porque sei que os autores desta parcela cresceram em Moçambique e poderiam escudar a resenha que lhes foi feita do texto nessa empiria própria. Ora deste grupo de jovens, entre os que mais se vieram a celebrizar, eu conheci - superficialmente - Virgílio de Lemos, e tive o privilégio de induzir a publicação de dois dos seus livros. Conheci bem mais, com verdadeira amizade de visitas mútuas, o José Craveirinha - e também induzi a publicação de um dos seus livros. E ainda mais o Ricardo Rangel. Ora presumo (pois conheci-o menos) que o Virgílio e tenho a absoluta certeza que do Zé Craveirinha e o Ricardo - eles tão dados à impiedosa ironia - se ririam, mesmo, se fossemos ver esta exposição e lessem esta formulação.
Outro detalhe, que é hiper-significante mesmo que as pessoas nem atentem (o que demonstra o estado de sonambulismo ainda que activista). O repetitivo e frágil ataque ao "luso-tropicalismo" culmina na crítica da "lusofonia". O painel é pobre, o texto do catálogo é naturalmente curto e, em meu entender, esquece outras componentes da sua formação. Mas tem o mérito de recordar, e bem, Alfredo Margarido, que num opúsculo disse de modo suficiente o que era necessário dizer sobre a tralha. Eu nada sou paladino da "lusofonia", um ideário incompetente e frágil. Ainda por cima sofri-o, quando era a ideologia do lumpen do funcionalismo público socialista. Um dia até escrevi um enorme ditirambo contra aquilo.
Mas há dois pontos esquecidos nesta exposição:
1) a lusofonia já não é, trinta anos depois do seu vozear, uma ideologia dominante nos aparelhos de Estado. Pois é um discurso político tão incompetente que foi sendo engavetado, e isso não transparece na exposição, desesperadamente à procura da perenidade das representações - ou seja, agarrando-se à ideia, "denunciando-a", de que se antes dominava o "luso-tropicalismo" hoje domina a "lusofonia";
e pior ainda, 2) esse ideário da "lusofonia" teve em Portugal uma consagração estatal: o Acordo Ortográfico de 1990, o qual tendo sido ratificado por um governo do PSD teve origem num agrupamento luso-brasileiro de intelectuais maçónico-socialistas da velha guarda ("republicanos", passe o grande anacronismo). O AO90 é a grafia da "lusofonia" desejada por esses sectores da velha "nostalgia colonial", no fundo actualizando o projecto salazarista dos 1960s de uma futura "comunidade de Estados de língua portuguesa", unidos pela língua e... sentimentos.
Eu não escrevo com o AO90 não por preguiça em actualizar-me. Mas porque sempre o repudiei dado ser símbolo e patético instrumento desse projecto político estuporado que é a "lusofonia". Justiça seja feita, o autor que aborda esta temática da "lusofonia" é Diogo Ramada Curto. Um intelectual robusto - e muito temido, pois é muito truculento na imprensa, distribui bordoadas a eito. E o qual, ainda que sendo o actual director da Biblioteca Nacional, não escreve sob essa tal grafia lusófona. Mas muitos dos outros autores lá vão grafo-lusofonamente ordeiros.
Dir-me-ão que isto é um pormenor. Não é! Neste contexto de intelectuais especialistas, embrenhadíssimos no "denuncionismo" "activista" isto é um pormaior, denotativo da ligeireza agit-prop.
7. O outro problema, que é o fundamental, é o viés. Alguns nunca o reconhecerão, aceitarão as palavras doutas. E outros apreciarão, considerarão uma boa acção, um bom "activismo", para a "causa".
A este viés panfletário, recordo, é preciso querer reconhecer. E sublinho que está no "pacote" inteiro, gritado. Escolho alguns exemplos, apenas avulsas ilustrações.
7.1. Escolhi como primeiro esta fotografia, tão explícita que nem é necessário comentá-la: o então famoso - e típico - Movimento Nacional Feminino é representado daquela forma, a querer-se chocarreira. "Palavras para quê?"...
7.2. Outro exemplo é uma ausência. Eu acompanhei a génese de um trabalho (livro e exposição) feito por Isabel Castro Henriques (coordenadora desta exposição), "Espaços e Cidades em Moçambique". Uma exposição cuja apresentação em Moçambique foi muito problemática - um dia terei de escrever essa memória. E que conduziu a uma digressão em Moçambique da sua autora - então acompanhada do seu marido, o grande intelectual Alfredo Margarido -, a qual tive o privilégio de acompanhar.
Ora nesse trabalho foi abordado a temática do desenvolvimento urbano - induzido pela presença portuguesa em períodos pré-colonial e colonial, e sobre a qual julgo que fez pelo menos outro livro-exposição relativo a Cabo Verde. Essa temática é completamente apagada desta exposição, por razões que são obviamente ideológicas. Entenda-se, há espaço para mostrar uma gravura da pré-colonial Tombuctu. Mas não para o rol de pequenas unidades urbanas até finais de XIX ou abordar o seu crescimento futuro. Porquê? É evidente que por não ser uma temática imediamente apreensível pelo público como "denunciável" (até poderia ser analisável desse ponto de vista, mas arrisca sempre que alguém passe por lá e deixe um "pelo menos construímos cidades", a prejudicar o efeito da cartilha).
7.3. Há um painel dedicado aos "Saberes Coloniais". É aborrecido resmungar com isto, pois tenho o maior apreço pela autora do texto, e lamentarei se ficar magoada, Mas sigo. O painel apresenta desenhos sobre as "viagens filosóficas" no Amazonas de finais de XVIII. E depois restringe-se a imagens e texto sobre antropologia, enfatizando a antropologia física - predominante em Portugal até a II GM, nas suas crenças da relevância de medições populacionais, e que tinha ênfase racialista e, muitas vezes, racista - e também o trabalho de Jorge Dias, eivado de preocupações de antropologia política aplicada. Ou seja, o que resta é que os "saberes coloniais" portugueses eram racistas e controleiros.
É certo que a propaganda oitocentista de um grande saber acumulado em Portugal sobre África servia interesses políticos - "direitos históricos" na "partilha de África" - e era irreal. E durante XX o conhecimento sobre as colónias africanas sofreu os contrangimentos devidos às limitações do campo científico português. Mas ainda assim foi produzido um vasto saber em ciências naturais (zoologia, botânica, medicina, veterinária, etc.) e matérias técnicas. E também fazia parte do discurso colonial o enfatizar da grandeza desse saber. Mas ele existiu, foi abundante e competente. Muito tinha dinâmicas utilitaristas, muito era utilitário. Mas não era só isso - e nessa sua redução ao "utilitarismo" (colonialista) vem também outro mecanicismo, a da redução da curiosidade científica dos técnicos e investigadores portugueses aos interesses económicos e políticos. Ora nada disso é aludido. Dirão alguns "ah, mas isto é sobre o racismo!! E o colonialismo repressor!". E eu responderei que não, é - e assim está anunciado - sobre o "colonialismo". E, neste "capítulo", sobre os saberes que nele foram produzidos. Mas, claro, se se afixar em exposição alguns progressos na área da hidrologia, ou dos saberes agrários, ou seja lá o que for, isso não é imediatamente apreendido pelo visitante comum como uma malevolência portuguesa.
Mais, o cartaz sobre "Saberes Coloniais" começa com uma frase rutilante: "Desde o século XV houve recolha e expropriação de elementos de territórios distantes". E depois avança que só em finais de XVIII é que começa a haver verdadeira produção de saber científico (as tais "viagens filosóficas"). Fui ver o texto. A primeira fase, bombástica, não está lá assim. O chavão denunciador é o do cartaz. Eu posso perguntar-me de que serve, neste âmbito, afirmar as "expropriações" de XV. Mas mais me pergunto a que propósito é que surge no início do cartaz... É apenas (mais) um detalhe de viés.
7.4. No catálogo - e isto foi-me lido por uma amiga, e eu esqueci a página (não a marquei pois o livro foi-me emprestado), afirma-se que (cito de cor) os nossos países congéneres antigos colonizadores têm feita a crítica aos seus regimes coloniais (entenda-se, a "desconstrução", no jargão) e que Portugal é uma excepção. Isto é uma especulação falsária. Pois é muito duvidoso afiançar um qualquer défice nosso nesta questão face às sociedades da Bélgica ou da Holanda, para exemplos-mores de países "congéneres". Ou, para forçar a nota, que a sociedade brasileira se assume como país colonial e deixe, definitivamente, de invectivar os portugueses que partiram há dois séculos. Ou que a Espanha, congénere hermana, se tenha expurgado das suas malevolências ultramarinas... Sim, os wokes britânicos abateram uma ou outra estátua, tiraram o Hume do nome de uma praça e quejandas ilusionices. Mas, francamente, é um desplante uma afirmação daquelas.
7.5. Para último exemplo de viés - e tantos outros tão explícitos há. Este está logo à entrada, num dos primeiros painéis, e é bom pois assim ninguém poderá dizer que "foi ao engano". A intenção de induzir uma associação de ideias, uma homologia, é evidente. Em cima está uma estação de viagem científica (eu não uso o termo "exploratória" para evitar a sua ambivalência semântica, que seria logo apropriada por quem leia de modo enviesado), a estação "Luciano Cordeiro" estabelecida por Henrique Dias de Carvalho, provavelmente em finais da década de 1880s ou no início de 1890s. Em baixo está uma gravura, ilustrando o transporte de escravos, agregados por um instrumento que desconheço o nome (golilha?) - "algemados" pelo pescoço.
É evidente que se está ali a proclamar a homologia entre as expedições científicas coloniais e o trânsito escravista, apagando duas dimensões: o progressivo abolicionismo internacional e português, e a integração da cientificidade nesse rumo. E afirmar isto não é esquecer a continuidade ilegal (e disfarçada) de tráfico escravista durante o último quartel de XIX e mesmo XX adentro, neste último caso em particular para São Tomé e Príncipe.
Mas nesta construção painelística, como se com souplesse, está condensado o programa ideológico desta exposição: o regime colonial é a perenidade linear do escravismo, sem tirar nem pôr. E ali consagrado pelo afixar de Silva Porto, o pombeiro oitocentista que cruzou Angola - sem uma palavra sobre o facto de ter sido ele uma enorme excepção.
Tudo isto, condensado num mero painel, demonstra, com evidência para quem queira perceber, outro vector estruturante da exposição: a inexistência de uma abordagem às dinâmicas africanas. Sim, surgem os manipanços, as cadeiras de chefe, os "artefactos"... Sim, há um ou outro painel aludindo às "resistências". Mas nada mais. Pois em havendo-as se poderia reduzir o impacto do panfleto "denunciatório", pensam - decerto - estes autores.
Exemplifico: num dos livros de José Capela (José Soares Martins) li há muitos anos um trecho impressionante. Uma página de diário de um austríaco (?), escrita em 1850. Estava em Quelimane e assistiu à chegada de uma pequena caravana de escravos, agregados deste modo (a tal golilha?). Acontecera que o navio negreiro já havia zarpado. Então os comerciantes abandonaram os escravos à sua sorte, e partiram. Mas não os libertaram, deixaram-nos agregados pelo pescoço. Ninguém os socorreu, e escrevia o estupefacto austríaco que eles cirandavam pela cidadezita, exauridos, esfomeados, sedentos, alguns deles já cadáveres, assim arrastados pelos outros. É uma imagem tétrica, uma ilustração extraordinária, crudelíssima, do que foi a realidade do comércio escravista.
Mas mais, na Quelimane de então existiriam - especulo - cinquenta portugueses, talvez alguns mais. Para além de alguns goeses (entenda-se, católicos, com cidadania... no conceito de aquele tempo). Indivíduos decerto que na sua maioria ou mesmo totalidade envolvidos no comércio de escravaturas. Esses portugueses ali residentes eram contemporâneos de Almeida Garrett, de Alexandre Herculano, Camilo já escrevia e estrear-se-ia em livro no ano seguinte. E nenhum foi partir as algemas daqueles desgraçados. Isto é terrível.
Acontece também que quem tinha produzido aqueles escravos - os tinha capturado e transportado, pago as portagens do caminho -, e sofrera a desilusão de não os ter vendido, e os deixara naquele estado desgraçado, eram ... africanos. E durante séculos assim foi. E como isso demonstra todo um mundo de dinâmicas africanas! O qual é completamente apagado neste exposição ("artefactos" bonitos à parte).
Outro exemplo disso? Lá está Mouzinho grande, quase solitário, prendendo Ngungunyane, glorificado em figura portuguesa de então. Mas nem uma palavra (ou imagem) sobre as teias de alianças (naquele caso de última hora, mas em tantas outros sítios mais trabalhadas) ou de interacções construídas. Ao longo de séculos.
8. Nos nossos países "congéneres" (França, por exemplo) há literatura actual que aborda, sem complexos e sem higienizações, estas enormes teias de dinâmicas, africanas, nas suas consociações e oposições com as europeias, asiáticas, americanas. Antes do colonialismo. Durante o colonialismo. Nesse labor se "desconstroem os imaginários". Não com este panfletarismo. Serôdio. Medíocre. Inaceitável no Museu Nacional de Etnologia. No Estado.