Depois da crise
Um País que durante séculos se habituou à impunidade dos poderosos assiste com espanto a uma vaga de inquéritos judiciais. Os altos escalões da administração, a banca, os partidos, tudo isto parecia intocável. E, no entanto, na comunicação social, onde antes se reclamava quase todos os dias por mais transparência e pela remoção imediata das maçãs podres, esta semana quase só se ouviram as vozes daqueles que, sem conhecerem os factos, contestam a actuação dos juízes.
É talvez cedo para se avaliar o impacto das grandes mudanças que Portugal sofreu nos últimos seis meses, sobretudo com o escândalo do BES e a queda da PT, o caso dos vistos dourados, a detenção de José Sócrates. E, no entanto, está em curso uma transformação no regime democrático, que coincide com o fim do período de ajustamento. A opinião pública sai deste longo período de sacrifícios muito mais exigente em relação à transparência do sistema político e ao uso do dinheiro dos contribuintes. Em texto anterior afirmei que Portugal está a sair da crise e a frase foi imediatamente recusada por leitores que nem sequer consideraram a hipótese.
É altura de tentar explicar. Durante três anos, os partidos e os média impuseram à sociedade portuguesa uma narrativa de extremo pessimismo sobre a situação nacional e europeia. Por vezes, Portugal era descrito em tons neo-realistas, como se estivéssemos nos anos 40, outras vezes parecia saído do expressionismo dos anos 20, onde pairavam as sombras fundas do pós-guerra. O naufrágio estava sempre na vaga seguinte.
Qualquer indicador favorável era imediatamente desvalorizado ou até ridicularizado. A Europa estilhaçava-se e ia para o caixote do lixo da História. Quem se atrevesse a escrever que as coisas podiam melhorar era considerado louco ou criticado por insensibilidade social. Pessoas que viviam em situação razoável ou boa consideravam que todos os portugueses estavam à beira da miséria.
E, no entanto, o colapso iminente, a espiral recessiva ou o êxodo em massa eram incompatíveis com os restaurantes repletos, o entusiasmo nos festivais de Verão ou as multidões de adeptos nos estádios de futebol. Surgiam também pequenos sinais de recuperação (taxas de juro baixas, emprego a subir, tímido crescimento económico, mais exportações, algum investimento), mas a sua menção era considerada propaganda. Os poderosos mitos em torno da natureza da crise eram difíceis de contrariar.
Por outro lado, cada nova dificuldade na União Europeia é ainda hoje interpretada como estertor final da organização ou negação da utopia. É quase impossível escrever, sem ser acusado de loucura, que na Europa está a ser criado um bloco político poderoso, liderado pela Alemanha, país pela primeira vez na sua história rodeado apenas por nações amigas. A estratégia de Berlim parece ser a de criar uma aliança com França, Itália e Polónia, núcleo duro que terá depois uma integração acelerada, não acompanhada pelos países periféricos que preferirem manter uma relação menos profunda. Entretanto, insistindo na ideia de uma Europa que nunca existiu e não existe, os nossos intelectuais criaram um clima de descontentamento em relação à UE, facilitando o afastamento progressivo do País.
A conversa da desgraça iminente já não faz sentido. Nenhuma crise é eterna, o problema está em definir o momento em que ela termina. O que é ‘sair da crise’? No caso português, será o momento em que o rendimento dos portugueses recomeçar a convergir com a média da zona euro, estando a economia europeia fora da recessão. Ou seja, se aceitarmos esta definição, estamos provavelmente a sair da crise no segundo semestre de 2014.
Convergir com a Europa tem de ser um objectivo nacional. Portugal não pode cair num pessimismo estéril ou na discussão monotemática sobre os erros do passado. A sociedade portuguesa ainda não resolveu os seus problemas fundamentais e um deles é sem dúvida a impunidade tradicional dos poderosos, um dos motivos na base da má distribuição de recursos. A longa campanha para as eleições de 2015 será uma altura favorável para se discutirem soluções que permitam eliminar os suspeitos do costume: a baixa produtividade, o desequilíbrio das contas públicas, a dívida, o desemprego, a pobreza, a demografia desfavorável, o deficiente sistema político e a relutância em aceitar a integração europeia. Falar durante um ano sobre os méritos ou defeitos dos casos de justiça não resolverá nenhuma questão relevante da sociedade portuguesa. Temos de começar a discutir o pós-crise, sem demagogia populista ou pessimismo tonto.