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Delito de Opinião

Dentinho

jpt, 12.10.18

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Conheci o Paulo Dentinho quando recém-chegados a Maputo, e logo ficámos amigos. Éramos jovens, ele recém-pai eu ainda não, ambos fascinados com o país magnífico, tão interessante e esperançoso, embrenhadíssimos no trabalho, ele correspondente da rtp e eu adido cultural, nisso muito cruzando opiniões e informações sobre o quanto se nos deparava, num constante convívio. Chegámos a viajar juntos no país, quando ele dinamizou a visita de um grupo de artistas encabeçados por Júlio Resende, uma magnífica aventura, e dor de cabeça logística na Ilha de Moçambique de então. Por vezes discordávamos sobre o seu trabalho (ele sempre teve a piedade de não criticar o meu), eu já armado (em) comendador a requerer-lhe uma espécie de "posição de Estado" dada a visibilidade da RTP(África) no país. E ele com uma perspectiva diferente - lembro-me de lhe contestar uma reportagem sobre os habitantes do jardim zoológico da Beira, gente que vivia no local e até nas jaulas, por causa da má recepção que havia tido em Maputo, as pessoas tinham-se sentido aviltadas. O Paulo dizia o contrário, e é evidente que tinha razão, pois tanto a vocação como a deontologia jornalísticas convocavam a reportagem, tão denotativa era aquela situação e não seria a "má impressão" que a RTP poderia colher que o iria fazer suspender o trabalho.
 
Na altura havia muitas visitas políticas portuguesas, em 97 o PR Sampaio e em 98 o PM Guterres com enormes delegações (150-170 pessoas), mas também um constante corropio de ministros, secretários de estado e afins. Vigorava em Lisboa a noção de que "estar no poder" implicava visitar as ex-colónias, coisa também de uma CPLP que começara. O que causava um carrossel de visitas vácuas, impreparadas, de teor algo turístico por vezes, e desprovidas de "sentido de Estado". E o Paulo dava-lhes a atenção que o seu apurado sentido profissional comandava - sendo também que muito do seu trabalho não passava na RTP por critérios da sede, dado o manifesto desinteresse de muitas dessas deslocações. Assim, dado o carácter pouco servil do seu trabalho, muitas vezes o ouvi contestar, "que não era o homem que ali devia estar", diziam ministros e assessores, desgostosos com a "cobertura televisiva" que consideravam obrigatória para a sua micro-pompa de governantes. Pouco lhes importava ser ele, de facto, competente, informado, criativo, analítico. E empenhado. Importava-lhes apenas o de não estar ele de chapéu na mão diante de qualquer chefe de gabinete do sub-secretário de estado ou de um assessor de sua excelência o director-geral. Na responsabilidade de ser correspondente do serviço público, e sem a ligeireza de servir o poder político do dia ...
 
Depois vieram as complexas eleições de 1999, culminadas com semanas de contagem de votos e de agitação política. A situação era surpreendente, explosiva mesmo, pois não eram esperados resultados tão elevados por parte da oposição nem tamanha demora na contagem. Nesse entretanto o Renamo fez uma conferência de imprensa e proclamou a vitória. Na altura só havia duas estações televisivas a transmitir no país, a muito estatizada TVM e a RTP(África). E foi esta que disseminou essa proclamação, o que teve um impacto estrondoso. O Paulo apareceu nessa reportagem com um óbvio nervoso, perceptivel para quem o conhecesse pois traduzido num ricto similar ao sorriso. Foi o quanto baste, o divulgar da versão renamista do processo eleitoral, praticamente inacessível na imprensa estatal local, e o aparente sorriso tornaram-no pessoa malquista. Sucederam-se as ameaças de morte, uma das quais estando eu sentado com ele numa esplanada. O Paulo aguentou, nós amigos dizendo para que se acautelasse que nem tudo é da boca para fora - como o comprovou o assassinato de Carlos Cardoso logo em 2000 e nos anos futuros vários atentados a intervenientes televisivos. Ao fim de algum tempo de contínuas ameaças de morte, e até porque ali vivendo com a mulher e as duas filhas, ele regressou a Portugal. Fui, com vários amigos, levá-lo ao aeroporto. Nessa sua despedida do país ele ia vestido, com tão polissémica ironia, com uma t-shirt do Frelimo. Também a simbolizar o quão absurdo é a demonização do jornalista quando autónomo. Digno.
 
Depois passaram anos, a vida. Eu fiquei em Moçambique, ele por Portugal e Timor (de onde lembro uma magnífica reportagem, a tornar épica a constituição do arquivo nacional por Mattoso). E fui-lhe vendo outros bons trabalhos, profundos, de verdadeiro grande jornalista, daqueles que nos faziam dizer à nossa pequenina filha, meio pirosos, "Carolina anda cá ver, este é amigo dos pais". E foi para correspondente da RTP em Paris, onde soube que estava bem e acreditei, pois deve ser um posto intenso e Paris deve ser uma boa cidade para quem gostar de viver na Europa. E comecei a lê-lo no FB, nos tempos de Passos Coelho e Portas. No seu mural pessoal o Paulo zurzia a política portuguesa e, muito frequentemente, o governo: em tempos de crise, naquele troikismo, motivos nunca faltavam para bater. Tanto o li que um dia lhe enviei uma mensagem "estás farto de Paris?" e ele que nada disso, estava a adorar, a família também, a mulher com emprego, filharada a crescer. "Ouve lá", ripostei-lhe, "continuas a bater assim e eles metem-te como correspondente no Corvo ou num sítio ainda mais ermo ...", que é assim que o poder funciona, e nós sabemos bem disso. E rimos, cada um diante do seu teclado. E ele continuou a criticar, lá na sua página pessoal, "sem dó nem piedade".
 
Passado algum tempo o governo de Passos Coelho actuou mesmo face ao Paulo Dentinho. Eleições à vista retirou-o de Paris, onde escrevia curtas críticas no FB para os seus 3 ou 4 mil "amigos", e meteu-o ... como director de informação da RTP.
 
Passaram anos. Eu pouco vejo tv e nada RTP. Mas nunca li nestas redes sociais grandes críticas à partidarização da informação da RTP (essa que era uma prática constante da casa), tanto a favor do anterior governo como deste. Agora o Paulo é afastado. Dizem que porque escreveu um texto na sua página pessoal com palavrões e um futebolista não gostou. E, aduzem agora para ajudar à justificação, porque houve má cobertura do fogo em Sintra - não sei se estão a captar a indecência, o conselho de administração, subordinado a este governo, afasta alguém com o argumento de que houve má coordenação na cobertura jornalística de um fogo: e isto com a notória descoordenação deste governo nos combates ao fogos . Isto é de uma impudicícia inaudita.
 
E é, acima de tudo, o começo do ciclo eleitoral. Evidenciando também uma enorme diferença das práticas políticas desta geringonça face ao passado recente. Aqueles que assistem à RTP poderão comprovar. Quanto ao Paulo Dentinho presumo que se tenha despedido do posto vestindo a sua t-shirt do Frelimo, nesta polissémica ironia, necessária que é para suportar esta gente.

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