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Delito de Opinião

Delitos poéticos (4)

Teresa Ribeiro, 04.07.14

Foto de Eduardo Gageiro

 

 

UM ADEUS PORTUGUÊS

 

Alexandre O'Neill

 

Nos teus olhos altamente perigosos 

vigora ainda o mais rigoroso amor 

a luz dos ombros pura e a sombra 

duma angústia já purificada

 

Não tu não podias ficar presa comigo 

à roda em que apodreço 

apodrecemos

a esta pata ensanguentada que vacila 

quase medita

e avança mugindo pelo túnel 

de uma velha dor

 

Não podias ficar nesta cadeira 

onde passo o dia burocrático 

o dia-a-dia da miséria 

que sobe aos olhos vem às mãos 

aos sorrisos

ao amor mal soletrado 

à estupidez ao desespero sem boca 

ao medo perfilado 

à alegria sonâmbula à vírgula maníaca 

do modo funcionário de viver

 

Não podias ficar nesta casa comigo

em trânsito mortal até ao dia sórdido 

canino

policial

até ao dia que não vem da promessa 

puríssima da madrugada 

mas da miséria de uma noite gerada 

por um dia igual

  

Não podias ficar presa comigo

à pequena dor que cada um de nós 

traz docemente pela mão 

a esta pequena dor à portuguesa 

tão mansa quase vegetal

 

 Mas tu não mereces esta cidade não mereces 

esta roda de náusea em que giramos 

até à idiotia

esta pequena morte

e o seu minucioso e porco ritual 

esta nossa razão absurda de ser

 

 Não tu és da cidade aventureira

da cidade onde o amor encontra as suas ruas 

e o cemitério ardente 

da sua morte

tu és da cidade onde vives por um fio 

de puro acaso

onde morres ou vives não de asfixia 

mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

sem a moeda falsa do bem e do mal

  

Nesta curva tão terna e lancinante

que vai ser que já é o teu desaparecimento 

digo-te adeus 

e como um adolescente 

tropeço de ternura 

por ti

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