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Delito de Opinião

Delitos poéticos (11)

Luís Naves, 11.07.14

Este poema tem história e delito, que tentarei contar:

Alguns dias antes de ser assassinado, o poeta húngaro Miklos Radnoti escreveu Razglednica-4, um dos mais extraordinários poemas que conheço. Esta é uma tradução possível:

 

 

Caí ao lado dele, o seu corpo virou-se,

tão esticado como a corda quando parte.

Tiro na nuca. “É assim que também vais acabar”,

murmurei para dentro. “Deixa-te ficar deitado, calmamente”.

A paciência agora floresce morte.

“Der springt noch auf”, ouviu-se por cima de mim.

Na minha orelha secava sangue enlameado.

 

Szentkiralyszabadja, 31 outubro 1944

 

Radnoti tinha 35 anos e cometera dois crimes: era judeu e escrevinhava coisas. Este momento em que antecipa a própria morte não tem sentimentalismo nem puxa à piedade do leitor. Aliás, os sobreviventes do Holocausto tiveram sempre dificuldade em explicar esta sensação de vazio e a resignação da vítima, como se as lágrimas fossem um estorvo que dificultava ainda mais a explicação do inexplicável. 

Neste caso, é impossível transmitir o abismo contido no poema. A tradução é literal, não literária, perderam-se as subtilezas do texto, o ritmo, a musicalidade da língua húngara e a sua concisão (basta ouvir no youtube para se perceber a complexidade). Há rimas internas que se perdem, sobretudo nos dois últimos versos, e seria possível alterar certas frases. Por exemplo, ‘a paciência agora floresce morte‘ pode ser ‘a flor da paciência é agora morte’. A ideia é a seguinte: o poeta está ao lado de um homem que acabou de ser abatido e pensa, ou antes sabe, que vai morrer da mesma maneira (como aconteceu). Um dos soldados diz em alemão ‘aquele ainda anda aos saltos‘ e, nesse instante, o poeta sente, misturado com lama, o sangue seco que lhe cobre a orelha. A frase em alemão é importante, pois o soldado podia dizer ‘aquele ainda mexe’, mas trata-se de algo mais complexo, havendo aqui a sugestão de saltos, pulos, alegria, Primavera, ressurreição. Isso em contraste com o verso anterior, o da resignação e aceitação da morte.

 

Esta sequência de quatro poemas, Razglednica, foi escrita durante uma marcha da morte por alguém que estava a experimentar o horror. Aqui não há teorias nem impressões. Estamos perante a verdade vivida.

A terrível marcha começou na localidade da Voivodina que dá nome aos textos e envolveu 3500 prisioneiros judeus. O número quatro é o último poema da sequência e foi escrito numa aldeia húngara, a 50 quilómetros do local onde Radnoti seria morto com outras vinte pessoas. Depois da guerra, a viúva (que morreu recentemente, com 101 anos de idade) procurou o corpo do marido e encontrou a vala comum. Junto do cadáver estava o bloco de notas com os últimos poemas, contendo instruções em várias línguas sobre a sua entrega a um eminente professor de Budapeste.

Foi assim que Miklos Radnoti, já relativamente famoso antes da guerra, se tornou um dos maiores poetas húngaros. Este é também um dos grandes poemas escritos durante o Holocausto e o derradeiro do autor. Aqui, não existe ódio ou raiva, apenas Humanidade. Só por isso, pertenceria à História da Literatura.

Outro elemento trágico é que provavelmente o poeta morreu devido ao impulso de escrever. Segundo afirmaram os sobreviventes da marcha da morte, ele foi vítima do espancamento selvagem de um guarda que o viu a escrevinhar no bloco de notas e talvez este poema esteja relacionado com o episódio da brutalidade que o condenava. Talvez estivesse a escrever este poema.

A 9 de Novembro de 1944, ferido pelo espancamento, incapaz de continuar o caminho, o poeta foi abatido com um tiro na nuca. Porventura, viveu o quarto verso, onde brilha a palavra ‘nyugodtan’ (calmamente).

  

nota: Os dois primeiros Razglednica foram traduzidos para português pelo poeta e escritor Ernesto Rodrigues, que publicou uma antologia dos maiores poetas húngaros, onde estão incluídos outros poemas de Radnoti.

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