DELITO há dez anos
Fernando Sousa: «Houve mil holocaustos, não houve só um. Negacionismo é passar sobre todos eles. Acabei de ler um: Holocausto brasileiro, da jornalista Daniela Arbex. Este foi também no século XX mas no Brasil, no centro “hospitalar” de Colónia, Barbacena, Minas Gerais. Milhares de pessoas, homens e mulheres, de todas as idades foram ali internadas por supostos transtornos mentais entre 1903 e o fim dos anos 80. Morreram 60 mil. A maior parte, 70 por cento, não tinha nenhum diagnóstico de doença mental. Eram epilépticos, alcoólicos, homossexuais, prostitutas, meninas engravidadas por patrões, mulheres despachadas para que os maridos pudessem viver com as amantes, brigões, pessoas só entristecidas.»
João André: «No caso de cancros, parte dos tratamentos de quimioterapia passam por um sistema de tentativa e erro, não se sabendo muitas vezes à partida qual o medicamento que poderá ter sucesso. Segundo me explicaram no passado, alguns há que têm uma enorme taxa de sucesso em casos específicos e são completamente inúteis noutros, aparentemente semelhantes. Esperemos que a avaliação do sucesso seja competente.»
Luís Naves: «Aqui é tudo verde e sedoso, prolongado e contido, cheio de esperança, mas nada de especial, sempre à espera não se sabe bem de quê. Que o tempo passe, talvez, que tudo escorregue sem passar, que o comboio chegue. Há quem esteja pior, nem a dormir nem acordado, preocupado com a mera preocupação, não sendo infecção nem alergia, mas estado de alma em fase aguda. Aqui, onde me encontra o crepúsculo, posso afirmar, com a certeza típica de um enviado especial que entrevistou a sua dose de taxistas: este é o País mais banal do mundo.»
Eu: «Os acontecimentos mais dramáticos da história mundial podem começar por um motivo fútil. Isto não os torna menos relevantes: uma coisa nada tem a ver com outra. Tal como alguns dos ditadores mais sanguinários de que há memória, à partida, nada tinham de psicopatas: eram homens comuns. Isso não os tornava menos perigosos, longe disso. O facto é que ninguém -- mesmo ninguém -- fazia a menor ideia, naquele período tão optimista da história mundial, da tragédia que estava prestes a acontecer no início do Verão de 1914. Dois tiros fatais disparados em Sarajevo por um anarquista sérvio contra o herdeiro do trono austro-húngaro e sua esposa, a duquesa de Hohenberg, produziram uma onda de morticínios em cadeia até atingir cerca de 20 milhões de mortos. (...) A I Guerra Mundial não era inevitável à partida: tornou-se inevitável pela infinita estupidez humana.»