DELITO há dez anos

Ana Lima: «Fernando Pessoa assistiu ontem, impávido, não sei se sereno, sentado na sua cadeira, ao que acontecia à sua volta. Habituado a tardes calmas e turistas que se fazem fotografar na sua mesa, viu pessoas descontentes. Umas vestiam-se à civil. Outras tinham uniformes de polícias. Uns estavam ali porque decidiram fazer greve ou, não estando nessa situação, quiseram manifestar-se contra o que já todos sabemos e que é uma das piores situações económicas de que esta geração tem memória. Outros, sofrendo igualmente os efeitos dessa mesma crise, estavam ali em trabalho, tentando manter a segurança de uma manifestação dos que estão tão descontentes quanto eles.»
André Couto: «Ainda que provocada, o que não parece ter sido o caso, a Polícia não se pode comportar como um puto na idade do armário, a rebentar de testosterona, e ver cada impropério ou palavra de ordem como uma luta de galos. É para o evitar que é investida da possibilidade de uso da força e demais poderes que a lei lhe confere.»
Ivone Mendes da Silva: «Hesitei enquanto escolhia um retrato de Isabel de Cosme dos Médicis para encimar o post até me decidir por este de Bronzino. Eu tenho, como já se viu, uma predilecção pelos retratos em que ele pintou as Médicis. Gosto daquela oficial imobilidade, daquela pose para o pintor. São retratos que, sempre que os olho, me fazem pensar no tempo. No tempo delas e no tempo por detrás delas, a tapeçaria que não se vê mas que está lá, bordada de enredos, segredos e tragédias.»
João Carvalho: «O Morris Minor 1000 dos anos 50 faz parte das minhas primeiras memórias dos carros que podia devorar com os olhos e as mãos. Era do meu tio António, era café-com-leite e era um pequeno familiar que teve muito sucesso.»
Leonor Barros: «Leio e ouço em alguns órgãos de comunicação social que ontem a polícia carregou sobre os manifestantes em Lisboa. Diz que no estrangeiro, esse território mítico onde tudo corre bem excepto num país também à beira-mar plantado com quem alguns de nós não se querem paracer nem por nada deste mundo, também se falou da carga policial sobre os jornalistas, diz-se ainda que os jornalistas têm de se identificar para não levar tareia, porque o resto do povo pode levar à vontade.»
Luís Menezes Leitão: «É curioso que a língua inglesa utilize para designar a fotografia a expressão "snapshot", que nos dá a sensação simultânea de um tiro e de uma captura. Porque de facto quem tirou esta fotografia deu um tiro certeiro na imagem de Portugal em todo o mundo. Bem pode o Governo protestar que nada tem a ver com a Grécia, que a greve geral não conseguiu os objectivos visados, e que o povo apoia na sua esmagadora maioria o programa de ajustamento. Toda esta argumentação, por muito certa que esteja, se evapora perante uma imagem com esta brutalidade.»
