DELITO há dez anos
Ana Vidal: «Fugia-nos o chão debaixo dos passos hesitantes, teimosamente paralelos, cuidando de que não houvesse o menor perigo de convergência. Fugia-nos o passado, o presente e o futuro, deixando-nos suspensos num limbo impossível. Fugíamos nós, enfim, mestres de todas as fugas. Fugíamos um do outro, dos outros e de nós próprios. Fugíamos, convictos. E nunca mais nos encontrámos. E nunca mais nos perdemos.»
Bandeira: «Acertar por pouco: errar ao lado.»
Fernando Sousa: «Não tenho um filme da minha vida - tenho vários. Confesso que quando me perguntam qual foi o que mais me marcou, isso me aborrece. Li algures que Jennifer O' Neill, hoje com 62 anos, vai reaparecer este ano no écrã. Não sei se me apetece voltar a vê-la; para mim, ela será sempre a Dorothy de Verão 42.»
João Carvalho: «Apesar do afastamento do bispo do Porto, Salazar não conseguira que a Igreja o substituísse, nem evitara o epíteto de "exilado político". Podia dar a batalha como ganha, mas não fôra limpa como lhe seria conveniente e, ainda por cima, não vira todas as suas vontades satisfeitas pela Igreja — apenas algumas e, mesmo assim, fora do tempo útil — tanto em relação a D. António Ferreira Gomes como a outros membros do clero. O que o presidente do Conselho não parecia adivinhar é que havia uma guerra surda já em marcha contra o regime, além da guerra aberta que vai estalar em África, e que aquela batalha, mal resolvida pelo cardeal-patriarca nesse dia 13 de Janeiro [de 1961], era apenas uma pequena parte dos confrontos que iam seguir-se.»
Marta Romão: «O quê, achas que há razões para ser optimista? Que estupidez, não andas a ler jornais? Não vês televisão? Olha as pessoas a ir ao Banco Alimentar, as cantinas das escolas que abriram nas férias para fornecer refeições aos alunos, as fábricas a fechar? Não vês isso? Ah, achas que isto vai melhorar? És mesmo anjinho. Estes gajos são todos uns ladrões, querem é encher-se à nossa custa. A mim não me enganam mais, nem levam mais o meu voto. Há-de ser branquinho. Melhor, nem meto lá os pés. É uma vergonha este país. Nunca há-de andar para a frente. Qualquer dia, até somos comprados pelos chineses. Já estão cá tantos a viver, é quase porta sim, porta não. Se os espanhóis não estivessem também à rasca já tinham entrado por aqui adentro. E se queres saber, se calhar até era melhor.»
Rui Rocha: «São dez e meia e estou nos serviços administrativos de uma Universidade. Espero a minha vez para levantar um certificado de que preciso com urgência. Espero sentado. Estou instalado com uma comodidade austera. Adequada. Os meus pés batem no chão, preparando-se para o momento em que me hão-de levar até à acolhedora secretária onde são atendidos os utentes. Sou o próximo. Antecipo o momento tão ansiado. Já é indisfarçável o gozo da vitória. O jovem que estava a ser atendido levanta-se. De súbito, constato uma insuspeitada agitação vinda do lugar onde a amável funcionária estava sentada. A sua mão, que eu suspeitara bem mais delicada, apanha sei lá eu onde uma pequena placa. E, com uma rotação de pulso improvável, vira-a para mim, colocando-a em cima da mesa: ENCERRADO. A outra mão, entretanto, ficara completamente livre para pegar no telefone e anunciar a alguém que estava na hora do cafezinho.»
Eu: «Estes dados desmentem de algum modo a relevância concedida pela maioria dos comentadores televisivos a Defensor Moura enquanto manifestam o seu irreprimível desdém por Nobre. Acontece que o cidadão comum, à revelia destes comentadores, revela interesse por alguém com o percurso de vida, a capacidade de iniciativa, a militância cívica e a independência do fundador da AMI.»