DELITO há dez anos
António Luís: «Circunstâncias profissionais retiraram-me de terra continental e colocaram-me na ilha da Madeira, desde Agosto de 2009. Não há como estar aqui, sem perceber o compasso da terra, entrecortado pela paisagem abrupta que nos entra pela visão a cada passo que se dá. Tudo aqui é repentino. Desde o tempo (todos os dias existem as quatro estações na ilha) à rudeza da montanha. Precipícios, falésias, rocha, escarpa, mar de várias caras e cores. À hora em que vos escrevo, a costa sul da ilha está a ser varrida por vento muito forte, o mar está grosso e bate violento contra as rochas. Bate teimoso, obstinado, num desgaste paciente.»
Rui Rocha: «O caso wikileaks representa, sobretudo, uma mudança de paradigmas. Assange é um jornalista? Qual o grau de segredo que deve ser preservado? Quais os limites à liberdade de expressão? A realidade não é o que parece, quer no que diz às intenções de Assange, quer no que diz respeito ao(s) crime(s) pelos quais foi detido? Está certo. São tudo questões muito estimulantes. O que me parece é que, numa perspectiva de entendimento do futuro, é tão útil discuti-las como debater o movimento de rotação da Terra. O leitor gostaria que o dia tivesse mais quatro ou cinco horas? Também eu. A má notícia é que o movimento da Terra em redor do seu eixo demora 23h e 56 minutos. Vamos então discutir o quê?»
Sérgio de Almeida Correia: «Quem promulga uma lei de financiamento dos partidos com tantas dúvidas e contando com aquilo que poderá vir a não acontecer - uma fiscalização efectiva e permanente é coisa que em Portugal não há memória de que tenha acontecido nem mesmo em situações menos complexas -, só pode estar a querer branquear a sua assinatura no diploma em relação àquilo que presumivelmente acabará por suceder. Não se trata de uma questão de boa fé, nem de um simples compromisso pessoal para reduzir as despesas a metade, gastando dois milhões em vez de quatro e oferecendo as sobras que houver aos pobrezinhos.»
Teresa Ribeiro: «São tão engraçados. Franzem o sobrolho, zangam-se, digladiam-se, cada um é melhor do que o outro a reformar o país. Querem a moralização da política, exigem transparência, mas na hora de se sujeitarem eles próprios a tão apertados ditames não conseguem resistir. Ainda não foi desta que os partidos tiveram coragem de conceber uma lei de financiamento partidário que os dignificasse e colocasse acima de suspeitas. Aprovado pelo PS e PSD, este diploma diz tudo acerca da vontade que os nossos políticos têm de reformar o sistema.»
Eu: «Soljenitsine foi o melhor cronista, em admiráveis páginas de ficção, dos anos de chumbo do totalitarismo soviético - o dos campos de concentração, o do quotidiano cinzento e desesperado dos presídios hospitalares, o dos horizontes sem esperança de uma revolução que tudo prometeu e a todos traiu. Foi ainda o criador de uma vasta galeria de personagens literárias que jamais nos desaparecem da memória. Ivan Denissovitch Shukhov, encarcerado por um crime que não cometeu, alguém que vegeta no limiar da sobrevivência no campo de internamento onde deixou de ter um nome para passar a ser um número: acompanhamo-lo em Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch (1962) - "um dia vulgar, sem sombras, um dia quase feliz". Matriona Vasilevna, a camponesa idosa que "era como o justo sem o qual, como diz o provérbio, não existe a aldeia. Nem a cidade. Nem toda a nossa terra": travamos conhecimento com ela em A Casa de Matriona (1963). Oleg Filimonovitch, protagonista dessa imensa parábola do sistema soviético que é O Pavilhão dos Cancerosos (1968): "um homem solitário pode dormir sobre tábuas ou no chão, enquanto o peito lhe albergar fé ou ambição."»