DELITO há dez anos
Ana Vidal: «Dir-te-ia que as águas subiram hoje de novo numa maré tão festiva como inútil porque de novo o navio se fez ao mar sem ti de velas desfraldadas num despudor que ainda te celebra. Dir-te-ia que de tanto fitar o horizonte os meus olhos confundiram já todos os azuis e fundiram todas as formas e refundiram todas as sombras. Dir-te-ia que as fronteiras se diluem sem retorno esbatidas pela maresia e pelo tempo. Dir-te-ia que me adormece o suave balanço das ondas no sussurro manso deste mar eterno que me deixaste de presente talvez para compensar a tua ausência.»
Bandeira: «Sei que há muito quem não goste de petições, portanto aqui vai uma que me é particularmente cara (tempo é dinheiro e tal): a “Petição em defesa da Missão do Jardim Botânico e da sua sustentabilidade ambiental, social e económica a longo prazo. Revisão imediata do Plano de Pormenor do Parque Mayer, Jardim Botânico, Edifícios da Politécnica e Zona Envolvente”. Apesar do nome, é uma Coisa Boa. Funciona assim: o leitor, cómoda e rapidamente, assina; os responsáveis, alertados, apercebem-se de que existem muitas pessoas preocupadas com o que eles estão a planear fazer na zona do Parque Mayer e Jardim Botânico; por fim, lavados em lágrimas, arrependem-se e alteram os seus pontos de vista, salvando as árvores e outras plantas nossas amigas de um destino cruel.»
Rui Herbon: «No princípio do século, o semiólogo italiano Umberto Eco percebeu alguns sintomas de amnésia no estado mental da Europa. Quando os países perdem parte da sua memória, do mesmo modo que as pessoas, sofrem graves crises de identidade. É o que sucede connosco; e, para melhor compreensão, proponho a leitura de “A passo de caranguejo” (Difel), uma selecção de textos do ensaísta, romancista e catedrático de semiótica mais famoso do mundo. Lendo Eco comprovarão a sua perspicácia ao descrever esses momentos históricos em que temos a sensação de que o progresso se detém e se fecham as portas que durante muito tempo permaneceram abertas para que as ideias circulassem livremente.»
Teresa Ribeiro: «Destapou o tacho e sorriu. A carne já estava coberta de líquido. Com o tempo aprendera a cozinhá-la em lume brando acrescentando-lhe apenas um dedo de água. Por experiência sabia que ao libertar-se com o calor, o soro que injectam nos animais juntamente com os antibióticos fazia sempre subir o nível do caldo. "Assim, com um mínimo de água o estufado fica mais apurado", reflectiu, orgulhosa do seu talento culinário.»
Eu: «O Presidente da República teme, acima de tudo, os julgamentos da História. E como nunca alimentou qualquer simpatia pelo actual líder do PSD nada fará para lhe tornar a vida mais fácil. A própria Manuela Ferreira Leite, aliás, encarregou-se de desfazer qualquer dúvida a este respeito quando no referido discurso – muito aplaudido pelos socialistas e naturalmente elogiado por José Sócrates – deixou claro que a questão da crise exige estabilidade política, o que implica naturalmente a manutenção em funções do actual Governo. “É tempo de as tentações partidárias cederem ao interesse nacional”, declarou, em evidente recado à direcção social-democrata.»