Delito de opinião
Depois de já ter lido 8 (oito) crónicas do Luís Naves sobre a crise dos refugiados na Hungria, entendi, no passado dia 14 de Setembro, escrever algumas linhas sobre uma afirmação várias vezes reafirmada naquelas crónicas de que a Hungria era uma democracia. E fi-lo chamando a atenção para a existência de vários modelos de democracia e para um conjunto de factos que em meu entender deviam ser conhecidos dos leitores do Delito de Opinião. E ontem, dia 17, depois de ter ouvido as declarações do Alto Comissário para os Refugiados e de alguns funcionários das Nações Unidas, permiti-me trazer a este blogue alguns outros factos históricos, estabelecendo um paralelo entre o que aconteceu em 1956 e o que está a acontecer em relação ao fluxo de refugiados, dando conta da solução que então foi encontrada. Foram as duas únicas coisas que escrevi sobre a crise dos refugiados na Hungria.
O Luís Naves, que já tinha fica amofinado com o primeiro texto, extraindo dele conclusões precipitadas e que, para além de desajustadas, pouco ou nada tinham que ver com o que lá está (do tipo "uma maioria constitucional, duas maiorias absolutas não contam nesta narrativa", "o homem só tem defeitos (...)", "se a Hungria não é uma democracia deve ser expulsa da UE", "seria preferível fechar os olhos e deixar os traficantes levar toda a gente até à Áustria", "os húngaros serão forçados a fechar a fronteira ou arriscam-se a ficar com 60 mil pessoas em dez dias-se", "o nacionalismo é também um exclusivo dos grandes", "[c]laro que os votos nos pequenos países já não valem nada e a Europa é cada vez mais uma aliança entre grandes potências que não toleram os inúteis gestos de independência dos pequeninos, portanto talvez se encontre uma solução mais expedita"), resolveu ontem voltar à carga a propósito do texto que escrevi sobre os refugiados de 56.
Em relação às respostas que lhe dei ao comentário que deixou no meu primeiro texto, o Luís Naves nada disse. Por isso, reproduzo aqui o que ali ficou:
"Quanto ao argumento da maioria constitucional e às maiorias absolutas só tenho a dizer que a democracia é antes de mais o respeito das regras do jogo, o respeito pelas minorias, a acomodação da diferença, e não me parece que qualquer maioria absoluta (antes Orbán também teve derrotas) legitimem a alteração das regras.
Só duas linhas relativamente à expulsão, porque quanto ao resto cada um tem a sua opinião e os seus argumentos.
Uma das coisas que tem sido salientada por alguns autores, e isso já era referido em 2011 pelo JW Muller, é que "European governments have been too preoccupied with the fate of the euro and their own economic woes to pay much attention to small neighbors about which many Europeans know next to nothing. (...) Brussels itself began to scrutinize the media law, and it nowseems sure that Hungary will amend it in response to criticisms from the EU. Still, it has become painfully obvious that the Union has many instruments and incentives to get countries outside its borders to adopt liberal democracy but precious few for changing the behavior of governments on the inside. In the wake of the failed EU Constitution, the focus has all been on respecting national differences, emphasizing Europe’s internal political diversity, and avoiding tough common European political standards. Tellingly, the latest European treaty—the quasi-constitution—has a provision for a member state to leave voluntarily, but no mechanisms for ejecting a country that has ceased to be democratic. True, there is the possibility of withdrawing voting rights from states that have violated the EU’s “fundamental values,” but no leading politician has even mentioned that possibility yet."
Um outro autor Ulrich Sedelmeir - London School of Economicas (JCMS, vol 52, 2014) escreveu: "Although the Commission made the debatable claim that the Media Law breached the EU media directive, it decided not to use infringement procedures.Instead, Commissioner Neelie Kroes was satisfied that the Commission’s concerns had been addressed in an exchange of letters with the Hungarian government, which promised to ease rules for foreign media and to soften the rules against ‘unbalanced’ coverage and ‘offensive’ Internet content. After the Hungarian Constitutional Court declared some elements of the Media Law unconstitutional, the controversy reignited when the Media Council withdrew the frequency for Klubradio, the main independent radio channel in the country, leading to criticism from the Commission, although there was no EU law that allowed it to act. A Budapest court granted a temporary relief for Klubradio to stay on air, but according to a Council of Europe expertise on the Hungarian Media Law, the government’s changes still do not meet European human rights standards. Freedom of the press remains problematic since the Media Council ‘still controls the entire broadcast sector and has [. . . the] legal power to reregulate print and online media’ (Bánkuti et al., 2012). In sum, the EU’s use of social pressure to achieve greater plurality and independence of the media was largely ineffective.
In January 2012, the Commission started infringement procedures against Hungarian legislation in three issue areas that had a separate basis in EU law. The lowering of the retirement age of judges (...) infringed Directive 2000/78/EC on equal treatment in employment. Measures to restrict the independence of the national data protection supervisory authority and of the Hungarian central bank, respectively, breached Article 16 TFEU and Directive 95/46/EC on data protection and Article 130 TFEU. Moreover, concerning the independence of the central bank, the EU not only used the infringement procedures – with the threat of financial penalties by the ECJ – but also used issue linkage. In April 2012, the Commission declared itself satisfied with the changes (...)"
Concluo que a UE não foi mais longe porque Orbán fez marcha-atrás, corrigindo o que foi obrigado a corrigir. Tal como a Roménia também fez. As maiorias de nada lhe valeram. Se todos os problemas fossem liminarmente resolvidos com a expulsão talvez já não houvesse UE."
Ontem, o Luís voltou à carga. E que diz ele, de relevante, em relação ao que eu escrevi: que o meu primeiro texto está "cheio de preconceitos" e que o segundo é "injusto", para depois concluir que a comparação com 56, "insinuando a insensibilidade e a ingratidão dos húngaros, revela a tese sentada no conforto do camarote".
A partir daqui, fazendo uso destes elevadíssimos argumentos, atira com uma série de questões que com toda a propriedade deviam ser dirigidas aos responsáveis da União Europeia e das organizações internacionais que estão no terreno. Reparar-se-á que eu nunca coloquei em causa os relatos que o meu colega de blogue faz, não procurei sequer dar resposta às perguntas que ele foi atirando para o ar nas suas crónicas, nem sequer contestei as conclusões que foi extraindo em defesa do que foi afirmando.
Eu só tenho a dizer ao Luís Naves que não percebo onde está o "preconceito", que aliás ele não desenvolve em relação aos factos que são apresentados e que ele também não refuta. Como também não desenvolve onde está a injustiça da comparação relativamente à situação dos refugiados em 1956 e em 2015. E vem dizer que eu venho insinuar a "insensibilidade e a ingratidão dos húngaros", revelando "a tese sentada no conforto de camarote".
Em relação a este último ponto, inclusivamente, eu remeti os leitores para declarações prestadas por um refugiado de 1956 e para o filho de um outro refugiado da mesma época. Se há o apontar de um sentimento de insensibilidade e ingratidão em relação ao que está a acontecer, isso estará nas declarações dos próprios húngaros que criticam a acção do seu governo. E sobre isso o meu colega nada diz. Aliás, o que diz a oposição interna húngara e as várias ONG que se queixam da acção de Orbán, o Luís Naves também ignora. Para o Luís, a narrativa do governo húngaro é que é a correcta, por isso não há nada a dizer.
Quanto aos números dos refugiados, o Luís Naves escreveu em 5 de Setembro "que só este ano, já entraram na Hungria 167 mil migrantes. Amanhã, a soma dará 170 mil". Bom, mas em 1956 na Áustria entraram 180.000. Em três semanas de Novembro terão entrado 113.000. E ainda lá estavam 150.000 da II Guerra. E a Áustria ao tempo não fazia parte de nenhuma União Europeia. E a situação resolveu-se sem muros, sem vedações de arame farpado, sem usar gás pimenta e gás lacrimogéneo, meios de que ainda ontem a Sérvia se queixou, por terem sido utilizados pela polícia húngara em relação a refugiados que se encontravam do outro lado na fronteira, no seu próprio território. Ah, pois, estavam a tentar entrar na Hungria porque por ali a volta é mais curta...
Vá lá que no texto a que agora se responde, o Luís Naves já vem admitir que, afinal, o Viktor Orbán "tem defeitos: é um conservador populista com visão exagerada do seu país, tem tendência para a franqueza pouco diplomática e para o que considera ser a defesa intransigente dos interesses nacionais". É um princípio, mas logo a seguir o Luís Naves justifica isso, normal, com a oposição de extrema-direita e a oposição de esquerda pós-comunista, acrescentando ainda, não vão os seus leitores ficar confusos, oposição "que levou a Hungria à falência". Bem sublinhado. Esta última nota deverá ser, pois, um dado essencial para se compreender a acção de Orbán, para justificar a sua actuação, a sua democracia musculada e o discurso populista. O Luís Naves devia explicar um pouco melhor estas coisas, bem como a história dos juízes do Tribunal Constitucional ou as alterações às leis da comunicação social que os restantes países da União Europeia obrigaram a Hungria a emendar. E já agora dizer quantos países, com excepção da Áustria por uma vez, foram obrigados a acatar recomendações da UE a esse nível. Está visto que o governo de Orbán e o Fidesz são "pequeninos" mas atrevidos. Fossem eles "grandes" e davam uma lição de democracia aos restantes europeus.
Para além disso, o Luís disse coisas tão extraordinárias como que "a vedação é uma medida paliativa", que "ninguém os impede de apanhar o primeiro comboio para a Alemanha" e colou o Jobbik (o partido de extrema-direita) a Putin, quando aquele com quem Putin faz acordos, tal como faz com a Síria de onde os refugiados vêm, é com Orbán. O refúgio insistente no zeloso cumprimento dos Acordos de Schengen, perante a gravidade e excepcionalidade da situação, só me fez lembrar um manga-de-alpaca que com todo o zelo recusava requerimentos por serem dirigidos ao Chefe da Repartição de Finanças, que estava de férias, quando deviam ser endereçados ao "Chefe da Repartição de Finanças (Substituto)".
O Luís também não esclarece a questão dos juízes, mas é pena, porque provavelmente poderia dar-nos a conhecer os argumentos que faltaram a Orbán para seguir em frente com a reforma do Tribunal Constitucional húngaro, fazendo calar os tontos de Bruxelas. Num dos seus textos até diz que "estamos a assistir a uma campanha organizada (por quem?) que visa exercer pressão política sobre os países do grupo de Visegrad". Pois é, o mundo está cheio de malandros que querem tramar a Hungria...
O Luís gostaria que eu entrasse num jogo de ping-pong, mas confesso que tenho pouca paciência (e tempo) para isso. Não gosto de ver jogos de ping-pong. A maior parte das vezes a bola só é vista pelos jogadores e pelos árbitros. Tão pouco estou interessado em dar lições aos leitores ou a ele. Não tenho esse atrevimento.
Aliás, só escrevi o que ficou registado sobre a democracia húngara porque a determinada altura, tanta era a insistência do Luís em mostrar que a Hungria é uma democracia (num dos rankings dos indicadores de democracia estava em 36.º lugar, muito abaixo de Portugal), que comecei a ter a estranha sensação de que Orbán seria um reincarnação do Senhor, a UE uma cambada de malandros a fazerem um uso reprovável do seu poder sobre um pequeno país, e que o Luís Naves foi o escolhido para escrever cartas para os pastorinhos. Como não me chamo Jacinto, Marta ou Lúcia achei por bem marcar a minha posição, fazendo uso da minha liberdade de crítica, o que fiz, sublinho, apenas em relação às questões que eu considero essenciais para os leitores poderem, se quiserem, reflectir e sem que para tal fosse contrariar os factos e as conclusões, algumas sub-liminares, que o Luís apresentou. E repare-se que logo no primeiro texto que escrevi não contestei que a Hungria fosse uma democracia, embora fizesse notar, e foi esse o propósito, a existência de vários modelos e de algumas coisas "estranhas" que se passavam nessa democracia. E escrevi: "importa referir meia-dúzia de outros aspectos que não têm feito parte dos relatos do Luís Naves, e por isso não têm tido resposta, para que as pessoas não pensem que a democracia húngara é igual à alemã, ou à inglesa, ou à francesa, ou à espanhola, à italiana, à belga, à holandesa, e por aí fora, até à portuguesa".
A factos contrapus outros factos e clarifiquei fontes, socorri-me de textos de académicos, de notícias, de registos conhecidos. Os leitores se quiserem podem informar-se. Já o tinha feito anteriormente quando vi a defesa que o Luís fez de algumas teses em relação à Grécia, sendo certo que não tenho nem manifestei particular simpatia pelo Syriza em nenhuma ocasião. Como várias vezes tenho feito e inclusivamente aqui escrevi uma vez, a provocação é um direito. E a ironia nunca fez mal a ninguém. Eu prefiro ter leitores que contrariem as minhas teses, que apresentem outras versões, que me critiquem e se necessário me corrijam, como alguns por vezes têm feito, do que ter uma carneirada a aplaudir o que escrevo, a insultar anonimamente os vizinhos de blogue com referências indirectas e meias-palavras e a publicar as críticas nos comentários dos textos dos outros porque foram por mim censurados devido aos seus inaceitáveis termos, muitas vezes em relação a terceiros e claramente xenófobos, anti-semitas e racistas.
Aqui não há "narrativas", o mundo não é visto a preto e branco, de um lado não estão os bons e do outro os maus, não há grandes e "pequeninos", e eu não dou aulas de catequese a neófitos. Registo as minhas opiniões, as minhas posições, factos que entendo deverem ser registados. E cada um que tire as suas conclusões, que faça as críticas, de preferência sem atacar o vizinho, sem insultar quem escreve, sob pena dos comentários não serem publicados. Lá porque há quem queira "desancar" no vizinho, com quem até posso não simpatizar, o que nem sequer é o caso, não vou permitir que se publiquem nos comentários aos meus textos considerações que possam ser consideradas ofensivas para ele ou para qualquer outro dos meus colegas que aqui escreve. Tenho pena, mas o Delito de Opinião ainda não é a Hungria de Orbán. E se um dia for seguramente que me avisarão com antecedência, porque nesse dia a opinião deixará de ser livre.
Tenho pena, mas é assim que vejo as coisas, Luís.