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Delito de Opinião

Delícias Conventuais

Francisca Prieto, 27.05.15

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A tia Elisa era, na família da minha mãe, uma espécie de Fernando Pessa: nunca ninguém a conheceu com menos de 80 anos. Leve e delicada, cresceu num convento e foi aí que aprendeu a importância do ponto certo do rebuçado.

Vivia no alto alentejo, lá para as bandas de Portalegre, de onde todas as costelas da minha mãe são oriundas.

Um dia a tia Catarina (mulher do seu sobrinho Manel) pediu-lhe ajuda para dar conta de uma remessa de marmelos. Descascaram-se oito quilos, cortaram-se em pedaços uniformes e deixaram-se a cozer no grande caldeirão de cobre da velha cozinha alentejana.

Antecipava-se, para o dia seguinte, a laboriosa operação de os desfazer em marmelada.

Só que, por uma imprevisibilidade do destino, quis Nosso Senhor que o tio Manel exalasse o último suspiro nessa noite, no conforto do seu leito.

De manhã a tia Catarina deu conta da tragédia e mandou chamar a tia Elisa. Enquanto preparava as cerimónias fúnebres, que seriam realizadas em casa, deu-lhe instruções precisas para não deixar que os marmelos se arruinassem.

A Tia Elisa ainda a tentou dissuadir, mas deixar estragar oito quilos de marmelos era coisa que estava fora de cogitação naquela família. De maneira que, vendo a sobrinha irredutível, toca de lançar para o caldeirão os oito quilos de açúcar que a receita exigia.

Só que era preciso ficar ali a dar à colher de pau e convenhamos que a tia Elisa, que devia andar pelos oitenta e cinco, já não tinha propriamente o vigor dos verdes anos.

Às tantas, a viúva resolve deixar por breves momentos a câmara ardente e dar um salto à cozinha para ver em que ponto andava a marmelada. Deu com a pobre da tia Elisa à beira das lágrimas, queixando-se de dores no braço: “Ai filha, tem paciência, que eu não consigo dar conta disto”. A tia Catarina ia tendo um treco. Que se deitassem fora os marmelos ainda ia, agora os oito quilos de açúcar, é que nem pensar.

Arregaçou as mangas, agarrou na colher de pau e, com as suas próprias mãos lançou-se à empreitada.

De quando em quando aparecia uma sobrinha na cozinha a tentar chamá-la à razão “ó tia, venha descansar um bocadinho, deixe lá a marmelada”. E a tia Catarina, sem tirar os olhos do caldeirão, resmungava “deixem-me sossegada, já aconteceu hoje uma desgraça nesta casa, era só o que faltava acontecer outra”.

Reza a história que a marmelada ficou pronta e que o enterro do tio Manel lá decorreu sem mais incidentes.

 

Passados dez anos casou-se a tia Lacas, a irmã mais nova da minha mãe. Os meus pais sabiam que a tia Elisa, na altura com uns 95 anos, fazia gosto em vir a Lisboa ao casamento e resolveram ir buscá-la a Portalegre. 

Apresentou-se no seu modo discreto, carregando um grande saco. A minha mãe simpaticamente perguntou-lhe: “então tia, esteve a fazer doces para o casamento?”. A tia, com o ar envergonhado de quem já não consegue dar conta do recado, respondeu-lhe baixinho: “não filha, só levo uns rebuçadinhos de ovos. Fiz quatrocentos.”

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