Declaração
A primeira vez que visitei um aeroporto foi pelas ilustrações de Marcel Marlier, à boleia da famosa Anita, que ia viajar de avião. Provei scones, pela primeira vez, com Os Cinco, na mesa larga de uma cozinha ensolarada na Quinta. Com eles também percorri caminhos de bicicleta, mas as primeiras grandes viagens em Inglaterra foram de comboio, com Agatha Christie. Com os livros de geografia pisei a Muralha da China, as ilhas gregas, o deserto australiano e o Canal do Panamá. Ao Porto, fui pela primeira vez com Uma família inglesa e (re)conheci Sintra pela mão de Eça de Queiroz. E Lisboa… Ai! Lisboa, a Lisboa desse mesmo Eça à Lisboa de Teolinda Gersão, tão mais atraente que a Lisboa feroz do trânsito e dos transportes públicos!
Viajei nas naus (tive tanto medo do escorbuto que me tornei consumidora convicta de citrinos) e passei o Adamastor com o Bartolomeu Dias de Afonso Lopes Vieira. Conheci D. João II praticamente tu-cá-tu-lá, de tanto que li sobre ele e do que me contou Fernando Campos n’A casa do pó.
Se o mundo fosse um grande jardim, com um muro elevado à volta, a Biblioteca seria uma espécie de escada, discretamente encostada ao muro. Uns, poucos (sempre menos do que os que poderiam aproveitar), reparam nela e sobem ao primeiro degrau. Têm aí a noção de que o muro é finito. Vêem, pela primeira vez, que esse muro os separa de algo, do desconhecido que vive, cresce e se desenvolve do outro lado. Os que sobem ao segundo degrau começam a ter as primeiras impressões do que está para lá do muro. Quanto mais sobem, mais sabem. Mas quanto mais sobem, maior é a noção da vastidão que se estende até ao horizonte e do tanto que lhes falta saber. A Biblioteca é uma janela para o mundo, dizem alguns, um caminho para ser parte desse mundo, digo eu.
Não me lembro da primeira vez que lá fui, do ritual de preencher a ficha com o nome do pai e da mãe, declarando, por minha honra, que sabia ler. Mas lembro-me bem das tardes, das corridas à saída do colégio, do caminho para a biblioteca, as escadas, o número de leitor atirado para o balcão “1536!”, para me aceitarem a devolução dos livros do dia anterior e ficar com a ficha limpa para novos livros. Nela descobri mundo, estudei, cresci, fiz-me.
As Bibliotecas mudam vidas. Mudaram a minha. Conheci-a com 7 ou 8 anos e, até hoje, bem poucos foram os dias em que não estive ou falei dela. A Biblioteca é o amor da minha vida.
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Agradeço muito ao Pedro Correia o convite para integrar este Delito. É uma honra.