Decifre se quiser
Escrever bem, de acordo com a técnica jornalística, é adoptar a regra dos três C: de forma clara, concisa e compreensível.
O leitor não tem tempo nem paciência para voltar atrás porque não entendeu o significado daquilo que acabou de ler nem paga um jornal para decifrar charadas que lhe são servidas em forma de notícia.
Um excelente exemplo surgiu esta segunda-feira, no diário espanhol El Mundo, em texto assinado pela correspondente do jornal em Nova Iorque, María Ramírez, a propósito da súbita morte de um dos mais célebres nomes popularizados por Hollywood.
O primeiro parágrafo da notícia é um modelo de concisão e limpidez: "O actor Philip Seymour Hoffman, de 46 anos, foi encontrado morto este domingo no seu apartamento de Manhattan com uma seringa espetada no braço."
Pelo contrário, são cada vez mais frequentes as frases incompreensíveis na nossa imprensa - até em títulos. Frases codificadas, oriundas de um jargão tecnicista ou empresarial e polvilhadas de estrangeirismos que certos jornalistas pretendem à viva força incorporar no vocabulário comum. Esquecendo que devem ser eles a descodificar a mensagem e não o leitor a esforçar-se por tentar decifrar aquilo que se pretende comunicar.
Deparo todos os dias com frases em que prevalece o tom charadístico, numa espécie de caricatura involuntária do que não deve ser a escrita usada em jornalismo: opaca, inexpressiva, indecifrável.
Ao falar-se na crise do jornalismo contemporâneo omite-se com frequência este aspecto: a falta de capacidade para comunicar. Quando iniciei a actividade jornalística, na década de 80, os velhos tarimbeiros da redacção costumavam dizer aos novatos como eu: "Escreve de maneira a que possas ser entendido não pelo físico nuclear mas pela empregada doméstica." Utilizando, desde logo, um vocabulário acessível a todos. Precisamente ao contrário daquilo em que que tantas vezes reparo agora. Como se o mais difícil fosse escrever de forma simples.
Às vezes dou por mim a pensar que fazem falta esses tarimbeiros nas redacções actuais - pessoas dotadas não com títulos académicos mas com o bom senso que deriva da sabedoria comum.
Muitos dos erros que costumo anotar seriam evitados pelo olhar atento e experiente de um bom editor. Mas como evitar a propagação do erro se quem tantas vezes o comete são profissionais do jornalismo investidos das funções de direcção ou editoria?
Voltarei a este assunto, raras vezes ou nunca debatido no espaço público. Para já, ficam 50 exemplos que fui colhendo da nossa imprensa:
"falta cada vez menos para o kick-off deste jogo"
"alternar entre o aceleramento, o giroscópio e os dois joysticks"
"a proposta tem vários regimes e vários períodos de phasing out"
"o processo devia ter sido muito mais friendly user para os utilizadores"
"o event designer conta como gere a profissão"
"podia ser um storyboard"
"temos de buscar clusters de desenvolvimento"
"não se consegue compreender porque é que há este delay"
"as teorias de agenda-setting"
"criámos todo um sistema de back up"
"downgrade sobre a dívida portuguesa"
"o presidente fez o takeover"
"ele estaria a causar twitter storms constantemente"
"o mercado de credit default swaps atribui a Portugal uma possibilidade de default"
"case study na habitação"
"retalhistas omnichannel"
"hotel em Armação de Pêra é All inclusive"
"reestruturação de programas do daytime da SIC"
"se o governo quiser fazer um restyling, tudo bem"
"acessórios must have da estação"
"ficámos a saber o breakdown dos chumbos"
"é economic adviser do Governo"
"este país adora quick fixes"
"seria um trabalho de accountabillity útil"
"os estúdios a olharem ao espelho num blacklot em Hollywood"
"os respectivos artwork e streaming"
"Portugal tem de descer os salários em relação ao core da zona euro"
"o partido funciona por key words"
"livrarias queer migram para a Net"
"a última filosofia para superar crises conjugais é o coaching familiar"
"sou uma fashion victim"
"vai ser criada uma safe house em Lisboa"
"poderá utilizar o crowdfunding"
"o governo não pode ceder nos valores core"
"tentativa de criação de um catch-all party"
"Ucrânia e Polónia preparam-se para o seu close-up"
"as contas são o nosso bottom line"
"Bolsa alvo de ataque de short-selling"
"ao Chelsea sai quase sempre bem o papel de underdog"
"um daft punk em pose de artes marciais"
"receio de ficar fora do loop"
"ex-ministro recomenda a criação de um imposto one shot"
"o percurso foi feito para ser TV-friendly"
"o investidor segue uma estratégia passiva de buy-and-hold"
"a dialéctica entre believers e haters"
"o cinema teve outros provocadores e outros pranksters"
"há muito ganhou o gosto do gimmick"
"anunciada por uma espécie de cliffhanger"
"este projecto é um wake up call fenomenal"
"o back-to-basics está para ficar"
Decifre quem quiser. E quem puder.