Debate e cidadania
Bruno Alves, proprietário de uma excelente cabeça, disse numa rede, a propósito de um debate sobre a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento: “De um lado, o pessoal achou que Oliveira ‘destruiu’, ‘humilhou’, ‘arrasou’, ‘arrumou’, ‘limpou’ ou ‘deixou KO’ Sousa Pinto. Do outro, a conclusão foi de que Sousa Pinto ‘destruiu’, ‘humilhou’, ‘arrasou’, ‘arrumou’, ‘limpou’ ou ‘deixou KO’ Oliveira. O que só quer dizer que ficou demonstrada a absoluta inutilidade do debate político”.
Foi realmente assim, confirmo. Mas não subscrevo a ideia da inutilidade: quando o assunto se presta a diferenças nítidas esquerda/direita, e se não houver um patente desnível da capacidade argumentativa dos debatedores, o normal é que cada um veja como campeão aquele cujas ideias subscreve. Isto justificaria realmente que todos os debates desta natureza fossem inúteis se não se desse o caso de as ideias que as pessoas têm sobre a forma como o Estado deve intervir na vida dos cidadãos evoluírem.
Evoluem, sim. Tanto que todos conhecemos pessoas que se deslocaram para a direita do espectro, defendendo hoje o que antes censuravam, e, ao contrário, pessoas que se deslocaram para a esquerda, perdendo a capacidade de detectar tolices.
O próprio Daniel Oliveira é um exemplo disso, tanto que no seu extenso percurso político já esteve muito mais à esquerda. E gente incuravelmente optimista como eu, que simpatizo com o homem, vai a ponto de imaginar que, se a esperança média de vida estivesse nos 120 anos, aquele ilustre comentador da Sic ainda podia bem acabar em liberal.
Os debates fazem parte deste lento processo de alquimia: em sólidos edifícios de certezas um dia um argumento pode abrir uma fenda imperceptível; mais à frente a fenda pode evoluir para uma brecha; e um belo dia já há uma cratera e o habitante muda de poiso. Um debate não chega e, nesse sentido, é inútil; são necessários muitos, e são portanto essenciais.
O Bruno sabe bem disto. Irritou-se foi com a acrimónia, que realmente era dispensável, ainda que por mim ache que o que se perdeu em civilidade se ganhou em sinceridade. E se lá estivesse ainda era pior porque nem sequer entendo, como Sérgio, que o programa da disciplina devesse ser outro, mas antes que nem sequer deveria existir, ao menos sob a forma obrigatória. E a indignação moralista de Daniel, que guardou do Bloco aquele tique de depositário de uma superioridade moral que imagina ser atributo daquela seita tresloucada que ajudou a fundar, convenhamos: faz perder a cabeça a um santo.
Não vou juntar o meu arrazoado ao que inúmeros (desde logo os dois contendores, ambos em artigos no Expresso) já disseram: quem quiser que vá ler, além deles, o que escreveram, por exemplo, António Barreto ou Mário Pinto.
Somente chamo a atenção para este facto que, por demasiado óbvio, passa despercebido: quase toda as pessoas de direita são contra esta Cidadania e Desenvolvimento; e quase todas as de esquerda são a favor.
O que significa que, a mim, não me passa pela cabeça educar os filhos de Daniel. Se, por exemplo, o bom do intelectual quiser oferecer às netinhas carrinhos e não bonecas, não vá as prendinhas inculcarem nos tenros espíritos das meninas ideias preconcebidas sob géneros, por mim faz favor; mas já vejo com maus olhos que a escola diga à minha neta que, se o vovô lhe deu bonecas e não carrinhos, fez muito mal porque o paizinho tem tanta obrigação de cuidar dos filhos como a mãezinha.
Talvez tenha. Mas isso é um assunto nosso – não de Daniel, nem da escola, nem do legislador.
E então, este Sérgio, deputado socialista, ou, já agora, António Barreto, são de direita? Não. Apenas têm a ideia peregrina de que, no combate das ideias, é um golpe baixo formatar os filhos de uns nas ideias dos pais de outros. Ou pelo menos é assim que interpreto. Mas, lá está, não sou um espectador isento.