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Delito de Opinião

De moto para a eternidade

Pedro Correia, 03.06.21

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Carlos Santos Pereira (1950-2021)

 

Há uma fotografia de que gosto muito e tenho em destaque na divisão da casa a que chamo escritório. Estamos ambos à entrada de Vila Viçosa, empoleirados num muro, com a placa indicativa da bela povoação alentejana mesmo ao lado. Eu olho de frente para a objectiva. Ele, como de costume, olha noutra direcção. Como se, estando ali, já quisesse demandar outras paragens.

Foi assim que o conheci sempre, ao Carlos Santos Pereira, durante 40 anos de camaradagem jornalística: primeiro no Tempo, onde ele era correspondente em Moscovo até as autoridades soviéticas lhe darem guia de marcha, fartas da sua irreverência; depois no Público, onde foi o primeiro editor da secção Internacional; finalmente no Diário de Notícias, onde colaborava regularmente, especializando-se em temas relacionados com os Balcãs - uma das suas paixões mais duradouras, apenas superada pelo culto das motos de grande cilindrada.

 

Esta camaradagem perdurou muito para além das bancas de jornais. Ele era um dos manos mais velhos que tive o privilégio de manter nesta profissão de gente tão instável, tão irascível, tão desligada de afectos - como o Fernando Sousa, como o António Ribeiro Ferreira, como o saudoso João Carvalho noutras paragens. Éramos muito diferentes, mas estabelecemos uma relação de cumplicidade que ultrapassava o espaço físico concreto em que nos fomos cruzando, às vezes com anos de intervalo.

Almoçávamos por aí, jantávamos em ruidosas patuscadas nos mais diversos trilhos do País. Ele colaborou num suplemento literário que dirigi num jornal regional, era visita lá de casa, alinhava nas partidas de futebol organizadas por mim com amigos e simples conhecidos das mais diversas proveniências. Durante anos jogámos regularmente voleibol, duas noites por semana, na Escola Alemã de Lisboa. Quando vivi em Macau, recebi-o como hóspede numa inesperada visita dele em temporada de tufões.

O Carlos foi meu editor, mais tarde fui eu editor dele, mas entre nós nunca houve hierarquias nem galões: comportávamo-nos como soldados rasos do mesmo ofício, que só resulta quando é exercido com paixão. Fascinante ofício, o mais belo do mundo, como dizia Albert Camus.

 

Tenho incontáveis histórias dele - várias impublicáveis, atendendo à linguagem de carroceiro que cultivava como imagem de marca, para escândalo de gente com tímpanos mais sensíveis. Quem o conhecia superficialmente nem supunha que era um indivíduo culto como poucos e leitor voraz, sobretudo de livros de História, sua especialidade académica. De tal maneira que de vez em quando, estava ele em Lisboa e eu no Oriente, pedia-me de lá livros que aqui não existiam, na era pré-Amazon. 

Uma dessas histórias aconteceu em 1982, na primeira visita de João Paulo II a Portugal. Aguardávamos como repórteres a chegada do Papa ao alto do Parque Eduardo VII, onde se concentravam dezenas de milhares de pessoas: mal chegou a viatura aberta com o pontífice em pé acenando à multidão vibrante, ele desata a aplaudi-lo com entusiasmo, ali a meu lado. Momentos antes blasfemava, proclamando-se ateu militante e furioso anticlerical.

Nunca esquecerei esse momento. Nem as cenas de nervosismo que causava ao debitar palavrões em russo ou ler ostensivamente o Pravda na redacção do Tempo, povoada de fervorosos anticomunistas. Desdobrava o jornal, em grande formato, e ali ficava a exibi-lo, só para irritação desses colegas mais exacerbados.

Iconoclasta, uma vez e outra. Se havia governo, ele era contra. Fosse na Cortina de Ferro, fosse no "degenerado mundo ocidental", a que aludia com desdém.

 

Devo-lhe muitas provas de amizade - desde logo, ter integrado a equipa inicial do Público, como primeiro correspondente em Macau, a convite dele. Esta amizade não esmorecia mesmo quando estávamos longos períodos sem conviver - incluindo nos tempos mais recentes, em que ele se fixou em Ourém, seu concelho de origem, e pôde desenvolver o gosto pela silvicultura na propriedade herdada dos pais, trocando a efémera escrita jornalística pela elaboração de livros. Deixou-nos pelo menos três: Da Jugoslávia à Jugoslávia (1999), Os Novos Muros da Europa (2001) e Guerras da Informação (2007). Terá deixado outros, ainda inéditos.

Passou na vida como personagem de romance. Com gavetas que persistia em manter fechadas - incluindo a sua experiência, que adivinho traumática, como militar na Guiné, durante a guerra. Arranquei-lhe muitas confidências, mas nesse domínio reservado nunca entrei: era pessoal e intransmissível. 

Já não nos reuníamos em jantaradas ou futeboladas, as animadas partidas de vólei tinham ficado para trás. Mas a corrente da amizade nunca se quebrou. Como era visível a cada reencontro, que começava com uma pergunta inevitável dele: «Então como vai a puta da vida?»

 

Perdi há dias este meu mano. Imagino-o a montar de moto para mais uma viagem - desta vez rumo à eternidade. E a acenar-me de lá, entre duas pragas sarcásticas. Em russo, só para chatear a tribo dos "amaricanos".

Do svidânia, Carlos. 

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