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Delito de Opinião

«Dê a pata, não seja mau»

Pedro Correia, 28.09.20

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Até há poucos anos, era padrão corrente o excesso de formalismo no modo como as pessoas se dirigiam umas às outras na televisão. Recordo uma entrevista conduzida por Judite Sousa na RTP em que a jornalista tratou cerca de trinta vezes o seu convidado por sôtor. Sem ninguém a ter advertido, antes ou depois, que duas vezes já é de mais.

De repente, passámos para o extremo oposto. Hoje quase toda a gente se trata por tu. Ontem à noite, uma dessas jovens certamente mal pagas mas com "bom visual" postas à frente da pantalha para apresentar alegados espaços informativos tratava por tu um convidado com idade para ser seu avô enquanto este resistia à tendência, tratando-a respeitosamente por você

São sinais dos tempos. Por óbvia importação da televisão americana, onde as formas de tratamento "igualitário" se tornaram de uso corrente, facilitadas pela inexistência de diferença entre tuvocê (you, em ambos os casos) no idioma inglês.

 

Acho muito bem que se desengravate a linguagem. Andámos demasiado tempo amarrados a pompas retóricas, em parte relacionadas com supostos graus académicos de que se usava e abusava nas formas de tratamento verbal. Hoje nem no Parlamento se emprega a antiga excelência, salvo para uso sarcástico. 

Mas há o risco de cair no exagero contrário. Reparem, uma vez mais, no que sucede nas televisões: quase todos os intervenientes num debate ou numa entrevista se tratam hoje pelo nome próprio. Como se fossem velhos conhecidos e estivessem a dialogar em ameno convívio nos sofás lá de casa. Também aqui por óbvio mimetismo dos EUA.

Já temos o "Presidente Marcelo", as bloquistas Catarina e Marisa, o comunista Jerónimo e até o cê-dê-esse Chicão. Nisto o partido fundado por Freitas do Amaral e Amaro da Costa tornou-se precursor: não tarda muito, teremos a proliferação dos diminutivos (embora Chicão pretenda ser aumentativo). Uma vez mais, seguindo o exemplo dos States, onde já houve um presidente chamado Jimmy e outro chamado Bill - que assinavam assim até em documentos oficiais. Não custa vaticinar que também por cá surgirão um Jaiminho ou um Gui na caça ao voto.

 

Enquanto isto sucede, inversamente, a forma de tratamento dos animais torna-se mais solene, grave e reverente. Verifico isso agora com frequência, quando caminho nas ruas do meu bairro. Não faltam damas e cavalheiros a tratar por você os cães que levam a passear, o que para mim constitui novidade absoluta. Nunca tinha ouvido nada semelhante, nem na Lisboa mais snobe.

«Sente-se aí, dê a pata, não seja mau, mostre como é bonito.» São exemplos de frases que vou escutando, reveladoras da fulgurante ascensão canídea na hierarquia urbana deste nosso século XXI. Por vezes atrevo-me pensar que anda tudo um bocado às avessas. Mas é capaz de ser defeito meu, por absoluta incapacidade de acompanhar a marcha imparável do progresso. 

Como qualquer de nós, vou-me adaptando. Há dias, pedi ao canário: «Canta para mim, Caruso.» Mas logo emendei: «Cante para mim.» E ele cantou.

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