Da Valentia do Trabalho Anónimo
Quando o pai da Matilde, que era amigo cá de casa, foi para o céu, a Matilde tinha catorze anos. Quis o destino, ou a sua própria vontade, que a ela se fosse gradualmente aproximando da nossa família, ao ponto de hoje ter um lugar no nosso coração tão grande como qualquer um dos nossos sobrinhos, e uma intimidade muitas vezes superior.
A Matilde tem um percurso francamente diferente do da maior parte das raparigas da sua idade porque contrabalança na perfeição o seu tom cor de rosa betinho, com uma desarmante capacidade de compaixão para com o próximo.
A Matilde realiza-se no exercício do consolo e, por isso, nos últimos anos tem procurado, por iniciativa própria, diferentes formas de dar colo a quem desespera por um gesto de ternura.
Durante uns anos, integrou-se numa organização de distribuição de alimentos aos sem-abrigo. O que quer dizer que, quando calhava ir com ela jantar para as bandas da avenida da Liberdade, tínhamos sempre de abrandar o passo enquanto ela cumprimentava uma data de gente enfiada em sacos-cama pelas ombreiras das portas, avenida acima. Se íamos para fora e a levávamos connosco, já sabíamos que tínhamos de guardar as embalagens de champô dos hotéis porque ela era perita em convencer os sem-abrigo a irem tomar duche aos banhos públicos. Para confirmar que a operação se realizava, e que não havia margem para desculpas, apresentava-se à hora combinada, em cima da sua Vespa cor de rosa, frente ao edifício dos duches, com o frasco do champô e a imprescindível moeda de cinquenta cêntimos.
Depois, por alturas das férias da Páscoa, começou a ir em missões para o interior do país, oferecer os seus préstimos a lares de terceira idade. Vieram também as procissões e os campos de férias onde, no seu papel de monitora, conseguia enturmar na perfeição miúdos de famílias estruturadas com crianças problemáticas de instituições.
No meio disto tudo, chegou a altura da faculdade. Optou por enfermagem e está algures a meio do curso.
Um dia destes disse-me que queria ir para um campo de refugiados, que não podia olhar para o que se estava a passar e ficar de braços cruzados. Mas que tinha estado a investigar e que os voluntários tinham de pagar a viagem e a estadia do seu próprio bolso. Pediu-me ajuda para arranjar dinheiro, de maneira que coloquei a minha velha expertise pedinchona de angariação de fundos em acção e após uns posts no facebook e uns emails a amigos mais próximos, conseguiu-se em 24 horas ultrapassar a quantia necessária.
Lá embarcou a Matilde para a ilha de Lesbos, na Grécia, onde ficou durante os cerca de vinte dias que as suas férias da faculdade permitiam.
Voltou com as histórias com que tinha de voltar. Com o olhar de quem assistiu ao sofrimento humano na sua forma mais crua.
Perguntámos-lhe o que fazia no campo. Respondeu prontamente que tratava das “pontas soltas”. Isto, para quem a conhece, sabe que quer dizer que andou à procura dos aflitos mais aflitos para consolar. Que fez inúmeras visitas às lojas do chinês da cidade para, com o dinheiro que lhe sobrava, comprar gorros e sapatos para as crianças que se apresentavam de chinelos num lugar onde as temperaturas chegavam abaixo de zero. Que deslindou, das cinco mil pessoas que a rodeavam, quem precisava das luvas que ela própria tinha calçadas, ou quem tinha de seguir imediatamente para o hospital.
E que, apesar de se ocupar prioritariamente das crianças, eram os homens quem lhe fazia mais pena. “Porque para os homens nunca chegava nada. Era quem dormia ao relento quando já não havia espaço, era quem ficava sem comer quando não chegava para todos, era quem ficava sem cobertor quando a pilha acabava”.
E eu ouvi isto calada, primeiro porque não consigo imaginar o que é gerir uma enormidade destas, mas sobretudo porque de alguma maneira tudo parece menos cruel na doce voz da Matilde.