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Delito de Opinião

Da inutilidade do voto

Luís Naves, 29.05.18

No domingo, ao passar pela feira do livro, sentei-me na praça laranja onde se falava de uma obra sobre a política europeia. Alguém do público fez uma pergunta sobre a situação na Hungria e na Polónia e a eurodeputada socialista Ana Gomes começou a debitar umas vacuidades sobre o tema, com erros factuais. Estava a ouvir aquilo e perdi a cabeça, comecei a dizer em voz alta «isso não é assim», «dê exemplos», mas eu é que fiz figura de urso. No final, quando me aproximei da senhora, para lhe explicar o que pensava ser o seu erro, ela enfrentou-me com olhar vazio, a repetir uma banalidade, como quem dizia: «não te quero ouvir». Aquele foi um pequeno gesto da política contemporânea: as opiniões dos eleitores só são úteis se coincidirem com a ortodoxia, se estiverem na linha justa, se confirmarem as opiniões oficiais. Quem não concordar, pertence à desordem e, naturalmente, desisti de tentar debater o assunto. Há um partido húngaro que ganhou as últimas três eleições legislativas (mais as europeias e regionais) e a interpretação habitual não consegue explicar o fenómeno, mas uma eurodeputada com responsabilidades europeias não estava disposta a ouvir uma interpretação diferente da sua, ou seja, os países de leste não podem bater o pé a Bruxelas, têm de se apresentar de forma disciplinada e de chapéu na mão, para pedir o subsídio que generosamente lhes concedem (o pós-comunismo nunca existiu, a economia deles não está a crescer a 5%, nada de políticas próprias, os eleitores são perigosos nacionalistas e xenófobos).
Não se trata apenas de haver alguns políticos que já não ouvem as pessoas, há um fosso crescente entre as elites e o povo, pois os do topo estão numa bolha de privilégios e entre os que se arrastam pelo fundo fermenta um descontentamento que não tem por onde escapar. Os populistas italianos dizem que votar já não serve para nada e, a avaliar pela comédia felliniana dos últimos dois dias, parecem ter razão. Os mercados impuseram a um país rico (uma potência que integra o G7) um governo tecnocrático não eleito e sem viabilidade parlamentar, cujo mérito será o de manter a ortodoxia financeira que produziu péssimos resultados nos últimos quinze anos. Desta vez, a esquerda acha bem, ao contrário do que aconteceu quando a Grécia tentou sair do euro, situação em que os mercados e a Europa agiram perversamente. Aliás, Europa é cada vez mais um termo vago, pois o directório franco-alemão determina os acontecimentos e ninguém vota nos obedientes mordomos de Bruxelas. Em França, um em cada quatro votos não tem representação parlamentar (nem mediática) e na Alemanha o novo governo é formado pelos dois partidos que sofreram punições do eleitorado e que continuam tranquilamente no poder.
Estes, provavelmente, são apenas sintomas febris de uma doença mais profunda das democracias. A fragmentação política tende a agravar-se e a Catalunha serve como exemplo do que pode vir aí. Após eleições regionais que deram origem a um novo parlamento catalão, uma maioria parlamentar com minoria de votos não ouve um único argumento da minoria parlamentar com maioria de votos. A região ficou ingovernável e está sob tutela de Madrid. A burguesia elitista dos partidos catalanistas despreza com convicção os emigrantes internos (da Andaluzia e Galiza) que votaram no espanholismo. A sociedade está partida ao meio. A surdez política também é demasiado evidente em Portugal, veja-se a discussão de hoje sobre a eutanásia. Nenhum partido discutiu o assunto nas suas promessas eleitorais. Legislar sobre algo que não foi tema de campanha é absurdo (os partidos não têm mandato) e serve apenas para distrair de outros problemas mais importantes. Todos os eleitores podem dizer que, neste caso, o seu voto foi inútil.

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