Da indignação
O aspecto mais curioso na sociedade que busca incessantemente motivos para se indignar (aquela onde vivemos) é ser cada vez mais difícil prever quais os temas que gerarão maior desagrado. Como seria de esperar, a política, especialmente em anos de crise, funciona bem. A religião, evidentemente, também é quase sempre óptima a catalisar ódios reprimidos (um paradoxo?). O futebol, claro, permanece excelente a fazer com que opiniões contrárias ou pequenas provocações pareçam ataques pessoais indesculpáveis. Mas existe uma miríade de outros temas que, na sequência de uma piada seca ou de um adjectivo dúbio, têm um inesperado potencial para desencadear fúrias quase homicidas (o advérbio pode não passar de optimismo deslocado). Que num dado momento todos se afirmem Charlie não passa, evidentemente, de reacção condicionada pelo horror, pela força da opinião dominante e por défice de auto-análise. Dias, horas depois, regressa a indignação por tudo aquilo que não parece bem ter sido dito, ou feito, ou até pensado. Na política, isto tem consequências preocupantes: como já foi escrito, Churchill (inconveniente, irónico, fumador, gordo) nunca seria eleito nos dias que correm. Em contrapartida, Hitler ou Estaline (convictos, sem pinga de humor inconveniente - quase um pleonasmo -, tão indignados quanto a generalidade da população) poderiam muito bem ganhar eleições. Paulo Tunhas escrevia no Observador há um par de semanas: A seguir ao futebol, o desporto da indignação é certamente o desporto mais noticiado em Portugal. É também o mais praticado, mesmo fora das redes sociais e dos meios de comunicação (em ambiente familiar ou laboral, por exemplo). E podia ao menos servir de catarse (J. G. Ballard defendia que não se procurasse eliminar a violência associada ao desporto porque fazê-lo levaria a explosões menos previsíveis) mas creio que nem isso sucede. Revela-se apenas esgotante, para todas as partes envolvidas, e faz com que muitos prefiram não se expor. Subsistem, por um lado, os clichés e, por outro, o ruído e os especialistas no mesmo.