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Delito de Opinião

Cumpriu o dever até ao fim

Pedro Correia, 09.09.22

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A última imagem da Rainha ao receber Liz Truss, terça-feira passada, em Balmoral

 

Cumpriu o dever até ao fim. A imagem mais recente mas já crepuscular que guardamos dela foi colhida terça-feira, no castelo de Balmoral, ao receber a nova líder conservadora, Liz Truss, indigitando-a primeira-ministra. De aspecto frágil mas ainda gracioso, como sempre a conhecemos, neste último acto formal em sete décadas de palco institucional que assinalava também a despedida de uma vida longa e frutuosa, ao serviço do Reino Unido e da Commonwealth, que congrega 2,4 mil milhões de seres humanos em todos os continentes. 

Muitos dos seus súbditos nunca conheceram outro titular da coroa britânica. Isabel II - que ontem se apagou em paz na sua amada Escócia, no preciso local onde passou as horas mais felizes da sua longa existência - sucedera em 1952 ao pai, Jorge VI. Era uma jovem de 25 anos, tímida, insegura, certamente imatura: ganhava projecção mediática universal graças a inesperados golpes do destino. Primeiro à abdicação do tio, Eduardo VIII, que a colocou na linha directa da sucessão dinástica; depois devido à morte prematura do pai, fulminado por um cancro.

 

Essa jovem viria a tornar-se ícone de várias gerações muito para além das fronteiras da ilha onde nasceu. Como chefe do Estado da Inglaterra, Escócia, País de Gales, Irlanda do Norte, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Jamaica, Bahamas, Granada, Papuásia-Nova Guiné, Ilhas Salomão, Tuvalu, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Belize, Antígua e Barbuda, e São Cristóvão e Névis. Ultrapassou em longevidade física e política a sua trisavó Vitória, rainha entre 1837 e 1901. 

Ninguém viajou tanto como ela, não apenas às antigas parcelas do império britânico mas a todos os recantos do mundo.

Ninguém coexistiu com tantos líderes políticos e espirituais - 15 Presidentes norte-americanos, de Harry Truman a Joe Biden; sete Papas, de Pio XII a Francisco; 15 primeiros-ministros do Reino Unido, começando por Winston Churchill, quando era já lenda ainda em vida. Mais nove conservadores além dele e da recém-empossada (Anthony Eden, Harold MacMillan, Alec Douglas-Home, Edward Heath, Margaret Thatcher, John Major, David Cameron, Theresa May e Boris Johnson) e quatro trabalhistas (Harold Wilson, James Callaghan, Tony Blair e Gordon Brown).

Num tempo que presta culto ao provisório, ela simbolizava a permanência - desde logo pelos laços de sangue que a ligavam aos seus remotos antepassados normandos fundadores da monarquia há quase mil anos. Parecia imune a toda a erosão e nunca se deixou contaminar pelas paixões políticas. Robusteceu o trono ao colocá-lo acima de todos os jogos partidários: era uma das suas facetas mais relevantes de serviço público, do qual nunca abdicou - como deu mostras na vibrante mensagem dirigida aos britânicos, em Abril de 2020, no auge do pesadelo da pandemia.

 

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Isabel II, por Andy Warhol (1985)

 

Reforçara a sua legitimidade histórica na firme resistência da família real britânica às hordas nazis, mesmo com o palácio de Buckingham bombardeado pela Luftwaffe, nos dias de terror da II Guerra Mundial. Quando lhes foi sugerida a evacuação urgente para o Canadá, a mãe fez uma declaração que dissipou todas as dúvidas: «As crianças [Isabel e a irmã mais nova, Margarida] não vão sem mim. Eu não irei sem o Rei. E o Rei nunca partirá.»

Assim se forjou o carácter desta monarca que aos 18 anos, ainda durante a guerra, integrou as fileiras do serviço territorial como motorista e mecânica. Sempre em cumprimento do dever, como confirmaria ao honrar todas as responsabilidades constitucionais que assumiu ao ascender ao trono. Funcionando como traço de união entre povos e nações. Dando expressão concreta a conceitos abstractos como dignidade e majestade. Nunca as liberdades fundamentais, cada vez mais escassas noutras latitudes, correram o menor risco em dia algum do seu reinado. 

 

Não admira, por isso, que mesmo tendo já completado 96 anos mantivesse níveis estratosféricos de popularidade que nenhum presidente de nenhuma república granjeia hoje, seja onde for.

Não admira, por isso, que a triste notícia da sua morte - talvez pressentida mas ainda assim inesperada - tenha sido recebida com genuína dor e consternação um pouco por toda a parte, não apenas na chuvosa noite londrina mas muito para além das fronteiras dos 15 Estados ou territórios que a mantinham como suprema guardiã do império da lei e da magistratura do exemplo - o mais parco, precário e precioso de todos os poderes.

 

«Perdemos não apenas a nossa monarca, mas a matriarca da nação», afirmou um comovido Tony Blair numa mensagem de condolências. Enquanto David Cameron se declarava «afortunado» por ter recebido o conselho «da maior diplomata a nível mundial». Mick Jagger, voz dos Rolling Stones, falou por milhões ao escrever estas singelas linhas numa rede social: «Ao longo da minha vida, Sua Majestade, a Rainha Isabel II, esteve lá. (...) Lembro-me dela desde que era uma bela jovem até se tornar na muito querida avó desta nação.»

O filho mais velho, Carlos, sucede-lhe no trono. Mas ninguém preencherá o lugar que ela agora deixa em aberto nesta viagem para a eternidade.

 

Leitura complementar:

A Rainha (6 de Fevereiro de 2009)

«Ser imparcial não é humano» (24 de Fevereiro de 2018)

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