Crónicas sobre esta estreita faixa de terreno (6)
Já aqui falei sobre oliveiras e azeitona. No ano passado, aqui à volta, a produção de azeite foi quase nula. O frio e a chuva que se fez sentir no final da Primavera impediu o normal vingamento dos frutos e isso levou a que muitos dos pequenos produtores nem chegassem a dar-se ao trabalho de desdobrar os panos da apanha.
Os ciclos bianuais das oliveiras não são novidade e mais uma vez isso repete-se. A campanha deste ano será mais uma das muito produtivas. Inúmeras oliveiras têm os ramos vergados pela carga de azeitona e embora muita dela ainda não esteja completamente madura, a apanha já começou há umas semanas. É sempre difícil escolher o momento certo para conseguir a melhor maturação dos frutos sem que estes comecem a cair. Pode conseguir-se esse equilíbrio num olival, mas no momento em que decorre a apanha, o vento e a chuva provocam uma enorme queda noutro.
Já ouvi várias teorias sobre o ponto certo para avançar para apanha. É pacífico que mesmo antes de escurecer totalmente, a azeitona amarelada já possa ser colhida, embora a proporção das que estão ainda verdes, já amarelas e completamente negras, varie de árvore para árvore e por isso existe sempre margem para debate.
Noutros tempos não se deixava uma azeitona por apanhar. Os antigos contam que em miúdos, agachados ou de joelhos, percorriam todos os palmos de terreno debaixo das oliveiras, por vezes por Dezembro a fora, à procura do último bago. Nos dias de hoje este trabalho é realizado quase só por adultos, muitos deles já bem entrados, e o desgaste das respectivas articulações impede o rigor de antigamente. Muito azeite fica assim por apanhar.
Um aspecto importante a considerar prende-se com a praga da mosca-da-azeitona. As fêmeas deste insecto põem os ovos na polpa do fruto, o que leva à sua queda precoce e a um aumento da acidez do azeite. Para evitar este estrago pode recorrer-se à captura maciça com armadilhas, aos tratamentos com fito-fármacos ou a ambos. Dadas as cada vez maiores limitações no uso dos chamados pesticidas, aplicam-se algumas armadilhas para monitorizar a população da praga e assim direccionar os tratamentos para os momentos de maior actividade. Este rigor e atenção acaba por ser possível quase exclusivamente aos produtores intensivos e também por isso a qualidade do azeite da produção não intensiva é sempre mais irregular.
Os lagares tradicionais são memórias do passado. Pouco a pouco, todos foram sendo encerrados ou transformados no que se pode designar como sendo pequenas fábricas. As exigências sanitárias alteraram significativamente o processo, as madeiras deram lugar ao inox e a força humana e animal foi substituída por asseados motores eléctricos. Em vez de se fazer uma lagarada de cada vez, o processo é agora contínuo e torna-se quase impossível que as azeitonas que se entregaram correspondam ao azeite que se trás.
Ao contrário do que acontece com os produtores de vinho caseiro, que sabem que o seu produto resulta das uvas que realmente cultivaram, no azeite produzido nestes lagares modernos esta ligação será apenas casual, e isso mostra que será principalmente o apego às rotinas e às tradições, assim como o aspecto económico da poupança que é ter azeite sem ter de o comprar, que contarão como factores determinantes para que esta actividade se mantenha.
Para consumo caseiro compro normalmente azeite a vizinhos, mas este ano fui directamente ao lagar.
Logo à chegada, a longa fila de veículos comprovou que este é um ano de muita produção. Para poder levar azeitona para o lagar é necessário agendar com algumas semanas de antecedência, mas mesmo esse planeamento não impede as muitas horas de espera. Para ali não se pode ir com pressa. Se não chover é possível sair do carro e pôr a conversa em dia. Faz parte da tradição haver sempre um tipo armado em entendido a fiscalizar se a azeitona dos outros foi apanhada ou não antes do tempo e a decretar quem foi desleixado nos tratamentos contra a mosca.
No lado jusante da fábrica, mesmo a umas boas dezenas de metros do edifício, o cheiro a azeite novo invade as narinas. Portas adentro, a intensidade do aroma multiplica-se e é impossível não sorrir. A azafama é total. Há vasilhas a entrar vazias e a saírem cheias, e outras estão empilhadas à espera de serem recolhidas.
Neste lagar, em plena Serra dos Candeeiros, é possível comprar directamente mesmo sem levar azeitona, a preço de fábrica e com direito a prova.
É normal que nesta fase alguns lotes se apresentem turvos, mas em poucas semanas as borras assentarão e o azeite ficará translucido como se exige. O azeite novo tem também um aroma especialmente frutado e o sabor tem uma intensidade quase agressiva, mas com ou sem partículas em suspensão, é impossível chegar a casa sem aquela ansiedade que só se controla depois de o provar em pão demolhado.