Crónicas sobre esta estreita faixa de terreno (5)
Nos últimos dias de 2019, que parecem tão distantes, nasceram aqui no quintal quatro borregos, um macho e três fêmeas. Antes de tudo isto ter acontecido, tinha apenas duas ovelhas prenhes, que assim em poucos dias passaram a seis.
Ao contrário da prática habitual, não quis que fosse colocada nenhuma anilha na cauda destes mais novos. Esta anilha leva a que a cauda não seja irrigada e caia em poucos dias, sem mais danos para o animal. Um entendido recomendou-me fazê-lo. Avisou-me que quando o tempo chegasse, as borregas se tornassem ovelhas e a natureza as tornasse receptivas à cópula, a cauda causaria algum transtorno ao macho e por isso também algum alvoroço nas redondezas. Achei que não. Se na natureza a cauda nunca impediu que a espécie progredisse, não seria agora que o macho se ia atrapalhar.
A erva que a chuva do inverno torna suficiente para duas bocas nunca chegaria para o pequeno rebanho de seis que nesses dias passaram a habitar esta parcela de terreno. Com uma persistência a que nenhum herbicida poderia concorrer, aqueles quadrúpedes raparam rapidamente todos os centímetros do talhão que me pertence. Por sorte, um vizinho sem vagar para cuidar de um terreno contíguo, que é apenas dividido por uma linha de água e uma vedação, aceitou trocar a sua erva nascediça pela matéria orgânica que estes bichos produzem com relativa abundância. Assim, com uma palete a fazer de rampa e uma porta improvisada, aquela meia dúzia lá emigrava pela manhã e só regressava ao anoitecer.
Por vontade do destino, um desarranjo do sistema digestivo assentou praça ali no curral. A erva molhada funciona como um acelerador de toda aquela dinâmica e nem mesmo recorrendo aos clássicos travões intestinais, aveia demolhada e palha seca, consegui resolver o assunto. Fui assim forçado a recorrer a um entendido, que disse logo:
- Não lhes quiseste tirar o rabo, agora vão andar com uma recordação desta diarreia até ao dia que forem para o desmanche. – Os entendidos é que sabem.
Com o aproximar da Primavera, a força das tradições levou a uma alteração na composição daquele grupo. Já com os borregos desmamados, negociei as fêmeas com um outro vizinho que precisava de limpar um terreno e que já tinha apalavrado o empréstimo de um macho. Assim, pela ocasião da celebração da Ressurreição de Cristo, a borrega irmã do macho foi servida dentro de uma travessa de barro vermelho num almoço familiar. Para dar seguimento à geração seguinte, e de forma a evitar a consanguinidade, ficaram o jovem macho e as duas borregas filhas da outra mãe.
As semanas foram correndo e com o Verão chegou a puberdade dos borregos. Foi desde muito pequeno que o macho começou a ensaiar marradas em tudo o que mexia. No início era só para testar a dureza dos materiais, mas conforme foi ganhando peso, o instinto começou a impeli-lo a impor-se pela força. Quando chegámos ao fim do Inverno de 2020, a largura das jovens ovelhas já mostrava que não havia caudas que atrapalhassem nem o instinto nem o empenho de nenhum macho.
Conforme aqui relatei, os novos borregos, mesmo tendo nascido durante a noite, viram a luz do dia em Março. A data poupou-os ao sacrifício pascal, mas não a um outro evento familiar. Não me recordo qual foi a ocasião, mas sei que fui sensível ao alerta de um outro entendido:
- Olha que é a partir dos três meses que começam a ganhar gordura! – Este, além de um bom garfo, é meticuloso no detalhe das coisas importantes. O conselho provou ser sábio e graças à sua sabedoria tudo aconteceu no momento certo.
Os dois borregos foram consumidos em diferentes configurações gastronómicas e continuo sem saber se prefiro os medalhões no forno ou as costeletas na grelha. Ao contrário dos animalistas, acho que são mal empregues como matéria-prima de comida para cão, mas isso é a minha ideia, e respeito as dos outros.
Com o sol de Verão a pino, a tosquia tornou-se uma necessidade. É cada vez mais difícil arranjar quem faça esse serviço. Um outro entendido tem um tio que fazia tosquias, mas depois de uns alertas foi proibido pelo cardiologista de se dedicar a esse serviço. Depois de até no OLX ter procurado por este trabalho especializado, acabei por encontrar no concelho de Alcobaça um rapaz que o fazia depois de despegar da fábrica. Mesmo ficando com a lã e ainda dinheiro, começou a lamentar-se pelo pouco rendimento deste serviço logo à chegada, quando ainda tinha o carro a trabalhar, e só deixei de lhe ouvir as lamúrias mais de uma hora depois, quando já estava a engrenar a segunda velocidade rua abaixo. Atrás dele deixou duas ovelhas e um carneiro meio envergonhados e muito menos volumosos do que eles, e nós, estávamos habituados.
A testosterona do macho, que o ajudou a acumular quase o dobro do peso de cada uma das fêmeas, nunca o deixou ser um bicho sossegado. A partir de certa altura nunca as deixava chegarem-se da comida. As duas ovelhas passaram a aproximar-se sempre com medo de apanhar mais umas marradas. Mesmo recorrendo a duas manjedouras separadas por uns metros, ele não lhes facilitava a vida e, mesmo quando eu estava a alguma distância, ouvia-as a serem projectadas contra as tábuas do curral. Para que elas pudessem meter o dente nos restos vegetais da nossa cozinha, ou numa dose de ração, tinha de fazer uma grande ginástica para o atrair para o lado de fora e depois fechar muito rapidamente a porta, o que nunca seria uma solução permanente.
Um entendido no café disse-me:
- Olha que se elas não têm borregos a mamar e se estão tosquiadas, a esta hora já estão prenhes.
Assim, com dó das pobres coitadas que comiam a medo e eu já temia pelo dia em que o patife me quisesse encostar a cornadura, lá o despachei para o desmanche. E assim foi transformado em dois alguidares grandes cheios de carne, que foram em parte distribuídos por familiares e amigos.
Depois disto a calmaria regressou ao redil. As duas ovelhas já conseguem comer sem sobressaltos e já se vê o lombo a alargar, o que comprova mais uma vez que não é a cauda das fêmeas que impede o carneiro de cumprir o seu propósito. Fazendo a conta às 22 semanas de gestação, lá para Março acaba-se o tempo e assim se cumprirá mais um ciclo da natureza.
PS: Uma das ovelhas é ligeiramente maior que a outra. Desde que o macho saiu da equação que a mais pequena já entendeu que continua a ter de dar passagem e acesso privilegiado à maior. A lei do mais forte está claramente escrita no ADN dos bichos. Felizmente isso já não acontece com os humanos. Será mesmo que não?