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Delito de Opinião

Crónicas sobre esta estreita faixa de terreno (5)

Paulo Sousa, 14.10.21

Nos últimos dias de 2019, que parecem tão distantes, nasceram aqui no quintal quatro borregos, um macho e três fêmeas. Antes de tudo isto ter acontecido, tinha apenas duas ovelhas prenhes, que assim em poucos dias passaram a seis.

Ao contrário da prática habitual, não quis que fosse colocada nenhuma anilha na cauda destes mais novos. Esta anilha leva a que a cauda não seja irrigada e caia em poucos dias, sem mais danos para o animal. Um entendido recomendou-me fazê-lo. Avisou-me que quando o tempo chegasse, as borregas se tornassem ovelhas e a natureza as tornasse receptivas à cópula, a cauda causaria algum transtorno ao macho e por isso também algum alvoroço nas redondezas. Achei que não. Se na natureza a cauda nunca impediu que a espécie progredisse, não seria agora que o macho se ia atrapalhar.

A erva que a chuva do inverno torna suficiente para duas bocas nunca chegaria para o pequeno rebanho de seis que nesses dias passaram a habitar esta parcela de terreno. Com uma persistência a que nenhum herbicida poderia concorrer, aqueles quadrúpedes raparam rapidamente todos os centímetros do talhão que me pertence. Por sorte, um vizinho sem vagar para cuidar de um terreno contíguo, que é apenas dividido por uma linha de água e uma vedação, aceitou trocar a sua erva nascediça pela matéria orgânica que estes bichos produzem com relativa abundância. Assim, com uma palete a fazer de rampa e uma porta improvisada, aquela meia dúzia lá emigrava pela manhã e só regressava ao anoitecer.

Por vontade do destino, um desarranjo do sistema digestivo assentou praça ali no curral. A erva molhada funciona como um acelerador de toda aquela dinâmica e nem mesmo recorrendo aos clássicos travões intestinais, aveia demolhada e palha seca, consegui resolver o assunto. Fui assim forçado a recorrer a um entendido, que disse logo:

- Não lhes quiseste tirar o rabo, agora vão andar com uma recordação desta diarreia até ao dia que forem para o desmanche. –  Os entendidos é que sabem.

Com o aproximar da Primavera, a força das tradições levou a uma alteração na composição daquele grupo. Já com os borregos desmamados, negociei as fêmeas com um outro vizinho que precisava de limpar um terreno e que já tinha apalavrado o empréstimo de um macho. Assim, pela ocasião da celebração da Ressurreição de Cristo, a borrega irmã do macho foi servida dentro de uma travessa de barro vermelho num almoço familiar. Para dar seguimento à geração seguinte, e de forma a evitar a consanguinidade, ficaram o jovem macho e as duas borregas filhas da outra mãe.

As semanas foram correndo e com o Verão chegou a puberdade dos borregos. Foi desde muito pequeno que o macho começou a ensaiar marradas em tudo o que mexia. No início era só para testar a dureza dos materiais, mas conforme foi ganhando peso, o instinto começou a impeli-lo a impor-se pela força. Quando chegámos ao fim do Inverno de 2020, a largura das jovens ovelhas já mostrava que não havia caudas que atrapalhassem nem o instinto nem o empenho de nenhum macho.

Conforme aqui relatei, os novos borregos, mesmo tendo nascido durante a noite, viram a luz do dia em Março. A data poupou-os ao sacrifício pascal, mas não a um outro evento familiar. Não me recordo qual foi a ocasião, mas sei que fui sensível ao alerta de um outro entendido:

- Olha que é a partir dos três meses que começam a ganhar gordura! – Este, além de um bom garfo, é meticuloso no detalhe das coisas importantes. O conselho provou ser sábio e graças à sua sabedoria tudo aconteceu no momento certo.

Os dois borregos foram consumidos em diferentes configurações gastronómicas e continuo sem saber se prefiro os medalhões no forno ou as costeletas na grelha. Ao contrário dos animalistas, acho que são mal empregues como matéria-prima de comida para cão, mas isso é a minha ideia, e respeito as dos outros.

Com o sol de Verão a pino, a tosquia tornou-se uma necessidade. É cada vez mais difícil arranjar quem faça esse serviço. Um outro entendido tem um tio que fazia tosquias, mas depois de uns alertas foi proibido pelo cardiologista de se dedicar a esse serviço. Depois de até no OLX ter procurado por este trabalho especializado, acabei por encontrar no concelho de Alcobaça um rapaz que o fazia depois de despegar da fábrica. Mesmo ficando com a lã e ainda dinheiro, começou a lamentar-se pelo pouco rendimento deste serviço logo à chegada, quando ainda tinha o carro a trabalhar, e só deixei de lhe ouvir as lamúrias mais de uma hora depois, quando já estava a engrenar a segunda velocidade rua abaixo. Atrás dele deixou duas ovelhas e um carneiro meio envergonhados e muito menos volumosos do que eles, e nós, estávamos habituados.

A testosterona do macho, que o ajudou a acumular quase o dobro do peso de cada uma das fêmeas, nunca o deixou ser um bicho sossegado. A partir de certa altura nunca as deixava chegarem-se da comida. As duas ovelhas passaram a aproximar-se sempre com medo de apanhar mais umas marradas. Mesmo recorrendo a duas manjedouras separadas por uns metros, ele não lhes facilitava a vida e, mesmo quando eu estava a alguma distância, ouvia-as a serem projectadas contra as tábuas do curral. Para que elas pudessem meter o dente nos restos vegetais da nossa cozinha, ou numa dose de ração, tinha de fazer uma grande ginástica para o atrair para o lado de fora e depois fechar muito rapidamente a porta, o que nunca seria uma solução permanente.

Um entendido no café disse-me:

- Olha que se elas não têm borregos a mamar e se estão tosquiadas, a esta hora já estão prenhes.

Assim, com dó das pobres coitadas que comiam a medo e eu já temia pelo dia em que o patife me quisesse encostar a cornadura, lá o despachei para o desmanche. E assim foi transformado em dois alguidares grandes cheios de carne, que foram em parte distribuídos por familiares e amigos.

Depois disto a calmaria regressou ao redil. As duas ovelhas já conseguem comer sem sobressaltos e já se vê o lombo a alargar, o que comprova mais uma vez que não é a cauda das fêmeas que impede o carneiro de cumprir o seu propósito. Fazendo a conta às 22 semanas de gestação, lá para Março acaba-se o tempo e assim se cumprirá mais um ciclo da natureza.

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PS: Uma das ovelhas é ligeiramente maior que a outra. Desde que o macho saiu da equação que a mais pequena já entendeu que continua a ter de dar passagem e acesso privilegiado à maior. A lei do mais forte está claramente escrita no ADN dos bichos. Felizmente isso já não acontece com os humanos. Será mesmo que não?

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