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Delito de Opinião

Crónicas sobre esta estreita faixa de terreno (4)

Paulo Sousa, 09.07.20

Foi já há algum tempo atrás que fiquei de aqui falar sobre as minhas galinhas.

Depois da capoeira pronta, avancei com vários contactos entre vizinhos e amigos e consegui reunir as primeiras cinco galinhas do meu quintal.

Havia uma preta, a Unita, de que já aqui vos falei. Morreu nova em consequência de um impulso incontrolável de um amável canideo de um vizinho. Coitado do cão, que fez o que fez, mas como bem diria um irresponsável adolescente, foi sem querer.

As outras quatro, todas castanhas, talvez mais rápidas, mais sortudas ou apenas menos azaradas, escaparam-se desse raid carnívoro. O amável melhor amigo do meu vizinho (eu acho que o vizinho é que é o melhor amigo do bicho) continua a olhar languidamente para elas. Não fosse a vedação ter sido reforçada e provavelmente já mais alguma se tinha juntado à Unita.

Faça chuva ou faça sol, as galinhas são bichos que gostam de rotinas. Desde bem cedo que correm os cantos todos do terreno, esgravatam com as patas e penicam sementes, bagos de milho, ração, plantas, terra, areia e tudo o que calha.

Os pseudo-entendidos dizem que as galinhas que vivem nos aviários e que fornecem ovos aos supermercados nunca dormem e não se mexem pois o espaço da sua gaiola é muito exíguo. A luz das instalações onde vivem estão sempre acessas de forma a que possam ultrapassar a postura de mais de um ovo por dia. Talvez isso seja apenas mais um mito urbano.

A postura destas quatro sobreviventes do husky vizinho, é razoavelmente regular. Durante a manhã todas elas depositam o seu ovo num dos ninhos.

Não é surpresa para ninguém que o conceito de higiene destes bichos seja muito diferente do dos humanos. O chão de uma capoeira é todo ele um WC total. Expelem as respectivas fezes em qualquer sitio e a qualquer hora, com um incrível aumento de evacuação durante a noite.

Para as três que dormem no poleiro todo o processo acaba por ser muito previsível e quase ordeiro, mas a outra gosta de explorar sempre novos locais de pernoita, o que cria alguns contratempos e trabalhos adicionais.

Esta problemática sacana, a que tem penas brancas nas bordas das asas, tem um nome cá em casa que deriva de uma designação de um partido político maioritário no nosso país, que não vou aqui descrever para não pensarem que sou faccioso.

E não é que a filha da mãe descobriu há uns meses que a manjedoura das ovelhas é confortável para dormir. As ovelhas, coitadas, não mostraram grande desconforto com isso, mas o trabalho adicional todas as manhãs está sempre garantido.

Foi preciso rogar-lhe umas quantas pragas e ter-lhe pregado uns sustos nocturnos para chegar à conclusão que a abordagem teria de ser outra.

E foi assim que descobri uso para uma folha de serrote velha. Com os dentes da dita virados para cima à acompanhar a bordadura da manjedoura o assunto resolveu-se de uma só vez.

Depois de ter desistido da manjedoura, o iluminado animal começou a dormir então no ninho onde todas põem os respectivos ovos - apoiada na sua extremidade com a cabeça para fora e com a cauda mesmo a apontar para o centro do ninho. A natureza trata do resto e de manhã há sempre um contribuinte que passa a limpar o estrago. Há coisas que nunca mudam.

Uma outra, a da crista torta, ficou choca pela primeira vez no ano passado. Desapareceu durante quase um mês. O esconderijo que escolheu foram uns loureiros que fazem de sebe num canto ligeiramente desnivelado. As cores da bicha e do piso coincidiam na perfeição e a camuflagem foi perfeita. Não fossem alguns os ovos terem rebolado encosta abaixo e não a teria descoberto.

Para alívio das almas veganas feministas estas galinhas nunca coabitaram com nenhum galo. Não por nenhum motivo histérico-existencial mas apenas porque os galos acordam os donos muito cedo e durante as luas cheias passam a noite a anunciar falsos nascer do sol. São por isso uma má companhia. Em consequência disto, os ovos cá de casa não são fecundados, ou como vulgarmente se diz, não são galados.

A galinha fica choca segundo um processo em que a natureza ignora os devaneios das almas veganas. Durante quatro semanas ou mais, elas ficam recolhidas e agachadas sobre os ovos. Apenas dia-sim dia-não abandonam o posto para irem comer e beber, e logo rapidamente regressam ao seu ninho. São as hormonas ao serviço da procriação.

Nesta altura faz sentido, e não tendo ovos galados, pedir ovos a um vizinho. Foi o que fiz este ano quando voltou a estar choca. A combinação foi feita com um criador aficionado que é detentor de diferentes variedades de galináceos e os ovos foram por isso uma misturada de cores.

Dos sete ovos que coloquei debaixo da galinha nasceram quatro pintos. Dois pretos de pescoço pelado, um branco minúsculo e um malhado, bem maior e de penas arrepiadas. É uma família verdadeiramente multi-racial.

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Um dos pintos pretos apareceu morto de manhã, no quarto ou quinto dia de vida. Os outros têm-se aguentado. Como é habitual, e fazendo jus à sabedoria popular, quando ocorre alguma altercação nos arredores todos eles, coitados, correm para debaixo das asas da galinha. É também lá que dormem.

Estão agora com cerca de três semanas e já quase não cabem debaixo da mãe. Já fazem longos passeios pelas redondezas e já aprenderam a esgravatar com as patas e em seguida a penicar o chão.

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Segundo indicações de entendidos, é através do seu apêndice caudal que, nesta idade, se distinguem os machos das fêmeas. A confirmar-se a teoria, o grande malhado de penas arrepiadas é macho e não chegará a galo. Lá para o final do verão já dá para assar na brasa. O mais pequeno branco e o preto careca parecem ser fêmeas e assim poderão ficar para pôr ovos, embora isso ainda seja incerto.

A minha avó mantinha as galinhas poedeiras até serem muito velhas. Estas aves são sempre secas de carnes e dão um fraco petisco. Quando são mesmo muito velhas esse efeito ainda se acentua e só servem mesmo para fazer canja mas têm de ser cozidas durante muito tempo. A minha avó, que era entendida em muitas coisas e também em cozer galinhas velhas, tinha uma técnica especial. Acrescentava uma rolha de cortiça à agua da cozedura e o bicho ficava comestível mais rapidamente. Era uma boa forma de poupar lenha.

De cada vez que alguma galinha deixava de pôr, o comentário era sempre o mesmo: “Esta já só lá vai com a rolha”. Com o tempo isso acabou por ser uma forma de se referir a alguém de idade avançada. Lembro-me do meu pai, numa risada, usar exactamente essa expressão nas eleições legislativas de 2009 que opuseram Manuela Ferreira Leite a José Sócrates.

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