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Delito de Opinião

Crónicas sobre esta estreita faixa de terreno (3)

Paulo Sousa, 18.10.19

As vindimas acabaram há poucos dias. Os cestos já foram lavados e o vinho já está na curtimenta. Basta agora esperar pelo dia de São Martinho para as provas oficiais.

A quantidade foi mediana e as medições do álcool estimado foram generosas, ultrapassando em diversos lotes, nomeadamente de Touriga Nacional, os 14 graus. Estes valores fazem repetir a frase que descreve as uvas de bom grau e que só se ouve em alguns anos: Até se colam aos dedos!

Além da solenidade que é colher o resultado de mais um ciclo das plantas, a vindima tem também uma importância cultural, social e familiar.

Nos tempos em que beber vinho era dar o pão a mais de um milhão de portugueses, a vindima era um acontecimento vivido com muita intensidade no mundo rural.

Havia trabalho para todos até para as crianças. Cortar os cachos para dentro de um balde era tarefa para as mulheres e para os mais novos. Os adolescentes e jovens adultos recolhiam o conteúdo de vários baldes para os poceiros que acartavam ao ombro para as tinas de madeira colocadas em cima dos carros de bois. Os poceiros eram feitos em madeira e com aduelas metálicas, o que fazia deles tão pesados como o conteúdo, especialmente quando ficavam molhados. A aduela do fundo deixava profundas marcas nos ombros mal protegidos por um saco de serapilheira colocado a tiracolo.

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O meu avô materno era tanoeiro e isso duplicava a importância da vindima. Além da produção do vinho recebia as encomendas de pipos, tinas, celhas, poceiros e baldes. O trabalho começava vários meses antes da vindima.

Quando chovia no inicio de Outono os caminhos ficavam muito difíceis.  Segundo alguns relatos o clima no tempo do Estado Novo era incrivelmente pontual. As parelhas de bois lutavam com o peso das tinas em cima dos rodados de madeira, que rodavam num eixo do mesmo material. Para reduzir a fricção entre a roda e eixo usavam-se borras de azeite que eram transportadas dentro do corno oco de um bovino morto há muito. A lama espessa parecia não querer deixar que as uvas chegassem ao lagar e ninguém sabia se eram mais difíceis as subidas ou as descidas. Guiar uma parelha de bois era uma tarefa exigente. Uma lesão numa pata de um animal equivalia ao seu abate com o respectivo prejuízo patrimonial. Em compensação pelo esforço, os bichos recebiam um pequeno alento. Nestes dias exigentes eram alimentados com a melhor ração disponível e que consistia nos crutos de milho. As extremidades desta planta eram consideradas as mais nutritivas e por isso eram separadas, secas nas eiras e guardadas para a vindima. Quando a repetida passagem das rodas afundava os buracos ao ponto de poder assentar o eixo do carro ou partir um rodado, enchiam-se as covas com molhos de vides, que mais não eram que sobras das podas.

Chegar ao lagar era um alívio para os bois, mas não para os agricultores. Estava na hora despejar as tinas à forquilhada para as rampas que desciam até ao lagar. A nossa arquitetura rural era determinada por este processo. No piso térreo, ao lado da porta onde deve caber um carro de bois, existe sempre uma janela em frente ao lagar. Era construída na altura certa para permitir descarregar as uvas da grande tina de madeira, rampa abaixo, até ao esmagador que se encontra já dentro do lagar.

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Tina após tina o lagar vai enchendo até chegar o momento em que as uvas, já esmagadas, vão ser pisadas.

Tenho uma memória muito antiga de participar neste processo com o meu avô paterno e outros senhores já velhotes como ele. Lembro-me da solenidade com que as coisas eram feitas. Nos dias anteriores tudo era cuidadosamente lavado. As ferramentas, as tinas, o lagar, os depósitos e os restantes recipientes. Tudo tinha de estar imaculado para o grande dia.

Já com o lagar cheio de uvas esmagadas, arregaçavam as calças, lavavam os pés e benziam-se. Um ano de trabalho e esforço seria agora materializado, o que não era coisa pouca. Se alguma coisa corresse mal tudo poderia ser perdido e isso justificava fazer o sinal da cruz. Se durante a Eucaristia, na consagração, o sacerdote levanta o cálice com vinho e apresenta a oferenda dizendo “Fruto da terra e do trabalho do homem”, e se depois disso o transforma no sangue de Cristo, então Cristo pode ser invocado quando o vinho está a ser feito. Se fazer vinho não é uma coisa solene, então o que é que é solene?

Lembro-me também do doce cheiro das uvas esmagadas que invadia todos os recantos da adega e da cor tinta que corava as pernas dos agricultores, pálidas de nunca verem o sol. Lembro-me também de provar o doce sumo de uva ainda não fermentado e por isso ainda não alcoólico. Algum era logo retirado na bica do lagar para mais tarde se misturar com aguardente vínica e fazer vinho abafado, a panaceia das constipações.

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Quando o vinho era abundante tinha pouco valor comercial. A oferta e procura assim o determinava, e nem a socialista Constituição de 76 se atreveu a revogar essa lei.

Muito vinho barato equivalia a mais consumo e mais consumo equivalia a mais bebedeiras. Todas as terras tinham meia dúzia de bêbados crónicos e mais uns quantos mal disfarçados. O alcoolismo nestes meios sempre andou de mão dada com a pobreza e com a miséria. Tal como o ovo e a galinha não se sabe qual deles iniciou o ciclo.

O ónus social existia mas desde que o bêbado não fosse mal educado nunca seria proscrito. Eram dignos de dó, lamentava-se a falta de sorte dos desvalidos filhos que por caridade eram alimentados pelos vizinhos e às vezes vestidos com os raros restos das outras crianças.

Nesses anos de especial abundância, os consumidores mais compulsivos desculpavam-se com o pecado que seria desperdiçar a dádiva divina que é o vinho. E quem é que se atrevia a argumentar contra tal elaboração teológica?

Algumas destas figuras, assim como as suas frases características, são ainda hoje recordadas. É curioso como tem uma presença muito mais efectiva na memória colectiva do que a dos homens sóbrios, que são apenas lembrados pelos seus familiares directos. Será que isso acontece porque os bêbados quando etilizados exerciam a liberdade de mostrar na rua o que lhes ia na alma? Será que os outros, os que bebiam com moderação, quando morreram, a memória pública do que eram diluíu-se com a de todos os outros que bebiam responsavelmente?

Apesar de a tradição vitivinícola remontar por aqui aos tempos romanos a região nunca teve identidade que lhe permitisse ser uma região demarcada. Nos primeiros anos da PAC, após a adesão à CEE, esta estreita faixa de terreno entre a costa e a Serra dos Candeeiros foi destinada à fruticultura. A Maçã de Alcobaça é a marca de referência e reúne a produção de pequenos e médios produtores dos concelhos a sul de Alcobaça até aqui ao de Porto de Mós. Em resultado desta especialização na maçã e na pêra rocha, a vinha perdeu importância comercial. Apesar disso, as pequenas vinhas continuam a existir. Alguma produção é ainda entregue às adegas cooperativas da Batalha e de Alcobaça. O valor comercial deste vinho, classificado como corrente, é reduzido e insuficiente para remunerar condignamente o esforço e empenho necessário à sua produção. As cooperativas apelam à substituição de castas como forma de valorizar o produto final mas o investimento não é aliciante até pela elevada idade dos produtores.

Além desta trajectória descendente junta-se o cerco fiscal. A Autoridade Tributária exige que cada sócio da cooperativa declare esta actividade junto da Repartição de Finanças.

Num universo maioritariamente constituído por reformados com pensões de baixo valor, o receio de ter de começar a pagar IRS leva a que se abandone este magro complemento de rendimento. As cooperativas terão dados rigorosos sobre os valores desta realidade mas baseado-me em algumas conversas posso avançar que estamos a falar de rendimentos máximos de 600€ por ano, entregues mais de um ano após a colheita. É em casos destes que percebemos quão forte um governo consegue ser perante os fracos. Noutros palcos encolhe-se respeitosamente.

Apesar disso existem algumas vinhas novas com castas de renome e algumas até importadas. A produção continua destinada a consumo próprio e pontualmente é vendido a conhecidos. Há dias comprei um garrafão de tinto daqueles que mesmo com o rótulo rasgado deu para reconhecer que era de água do supermercado. Cinco litros por 5,50€. Nunca poderia passar por vinho de enólogo mas sabe àquilo que é, a vinho corrente, razoavelmente honesto, feito com teimosia, com um forte aroma a homenagem aos tempos em que as uvas viajavam nos carros de bois e com ligeiras notas de desafio ao Ministro das Finanças. Uma combinação perfeita.

 

As quatro últimas fotos apresentadas foram tiradas por mim na vindima de 2008. Todos os intervenientes directos dessa vindima já faleceram.

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