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Delito de Opinião

Corações compassivos

José Meireles Graça, 25.10.22

Um relatório da Pordata (que existe porque falam dele mas é inencontrável), um estudo da consagrada Susana Peralta e alguns colegas, e outro do comunista Eugénio, fundamentam o clamor de pessoas extremosas que vêm, em nome dos pobres, defender a tributação agravada de lucros inesperados.

Compreende-se: são de esquerda e têm um coração compassivo. Já eu sou de direita e tenho aquela víscera bastante gélida, o que todavia não tem apenas inconvenientes, dado que não a utilizo para pensar.

O motivo (ia a dizer pretexto) é a inflação, que se soma aos rombos que as famílias mais pobres já sofreram com a Covid, cujas medidas de combate as prejudicaram mais do que às mais abonadas, sem que tivesse havido apoio suficiente do Estado porque este, estando endividado, não quis (e bem, a meu ver) correr o risco de agravar seriamente a visibilidade da situação financeira deplorável das contas públicas.

Dois pontos prévios:

Um é o de que os problemas de falências, desemprego e perdas de rendimento coetâneos da Covid não foram originados por ela, mas pela sobre-reacção das autoridades. Como essa reacção foi quase universal, Portugal, que é uma pequena economia aberta ao exterior, nunca ficaria imune, mas o silêncio a que a comunicação social e as magistraturas da opinião (quase todas) votaram as vozes que incessantemente denunciaram o exagero e abuso das medidas, a magnificação histérica da ameaça e a glorificação acéfala de uma coorte de oportunistas que cavalgaram a onda do pânico, deveria ser objecto de um exame de auto-consciência. Enquanto a comunicação social não reconhecer, numa versão suave, que esteve enganada o tempo todo, ou, numa versão mais rigorosa, que acolhe no seu seio uma prodigiosa quantidade de idiotas, e os actores políticos do melodrama covídico não assumirem que prestaram um desserviço à democracia ao atropelarem-na em nome de uma ameaça em boa parte fantasmática, corremos o risco de, na próxima, repetirmos os mesmos erros, com as mesmas consequências.

O outro é que não estamos a falar de verdadeira pobreza mas de pobreza estatística, isto é, uma classificação arbitrária que considera como família pobre a que tenha um rendimento inferior a 60% da mediana de rendimentos das famílias. Isto significa que ser pobre em Portugal não é a mesma coisa que no Lesotho ou na Alemanha, que com o mesmo rendimento e a mesma capacidade aquisitiva se pode ser pobre num lugar e rico noutro, e que o indicador não mede na realidade a pobreza mas o grau de igualdade, sendo portanto um indicador ideológico. Que em Portugal o agravamento do índice coincida com o agravamento da pobreza real é uma medida da falência das políticas que têm sido seguidas, e não uma pista para o reforço da igualdade, que por si não implica desenvolvimento.

Como em todas as crises, até mesmo na maior de todas que é a guerra, houve quem ganhasse. E parece lógico que quem ganhou ressarça quem perdeu, visto que a causa das perdas é a mesma dos ganhos – é o que dizem todos os samaritanos que não poucas vezes se embrulham em autoridade académica para lhes reforçar o asneirol.

Lógico é. E errado. Porque é a tradicional toleima de reagir a quente a um problema criando outro maior. Desde logo por causa da definição do que sejam lucros “excessivos” ou “inesperados”. Para a esquerda comunista ou aparentada são todos – as boas empresas não distribuem dividendos porque o dividendo é em si imoral e se lhes sobram os recursos para operar tais engenharias então melhor fariam em dividi-los pelos trabalhadores, que são quem cria riqueza, além da aplicação em investimento, que os empresários em geral não têm o discernimento de saber fazer mas o Estado sim.

Os outros, isto é, os técnicos da redistribuição, que têm ideias nítidas e generosas sobre o que fazer com o que não lhes pertence, refugiam-se inevitavelmente em fórmulas que entram em conta com a média de lucros num período anterior comparada com o covidesco, para aí intervirem com a punção fiscal extra: ai encheste a burra, foi? Deixa cá ver esse excesso que nós vamos ali entregá-lo a quem mandamos para casa.

Ou seja, todos aqueles que aproveitaram a oportunidade para satisfazer a necessidade do mercado em, por exemplo, máscaras (e não interessa para o caso se a fé no farrapo a recobrir as ventas tivesse muito de psicológico e pouco de científico) receberão a mensagem de que, da próxima, o melhor é importar discretamente, de preferência constituindo pequenas empresas para o efeito – se não têm história o Fisco não pode fazer comparações.

O quê, é só para grandes empresas, tipo GALP, EDP, Pingo Doce e as outras cadeias de secos e molhados? Ah, essas não podem fugir. Claro que nos combustíveis há muito que a excessiva relevância da GALP deveria estar a ser combatida com o fomento da concorrência, dizem alguns entendidos no sector obscuro dos combustíveis. E como em Portugal grandes empresas já praticamente não há dar um bote às que resistem significa na prática embaratecê-las na bolsa, a fim de as tornar mais atractivas para capitais estrangeiros que se preocupem pouco com rendibilidades e muito com geoestratégias. Chineses, vá. A bolsa, aliás, que até mudou de nome porque já nem 20 empresas tem (era o PSI-20, agora é só PSI, aguarda-se que com a governação de esquerda se liquide definitivamente a economia de casino pelo expediente de as que restarem pertencerem integralmente a estrangeiros que não abram o capital), é bem a medida do regime: capitalista pouco, que dos pobres é o reino dos céus.

Quanto aos supermercados que, consta, estão a encher a burra à pala da inflação e da guerra, se tiverem juízo devem estar a constituir reservas porque quem não for cego notará que o mercado não cresce na proporção do aparecimento de novos operadores, como a Mercadona, e da abertura de novos estabelecimentos. O Estado que os quer pilhar será o mesmo que quererá salvar os operadores que a prazo vão entrar no vermelho?

Grandes empresas são tão poucas (e já objecto, as de energia, de tributação agravada) que, só com elas, o acréscimo de receita será menosprezável. De modo que é bom de ver que, aberta esta porta, seguem-se as médias e depois, em nome da igualdade e para contrariar efeitos perversos, as outras. Um clássico em impostos: quando nascem como extraordinários para ocorrer a circunstâncias extraordinárias tornam-se em permanentes porque se criaram novas clientelas e dependências igualmente permanentes.

E então os fabricantes de vacinas? Esses e outros estão a fazer lucros inimagináveis à boleia da urgência das “vacinas” (vai aspado porque se não impedem o contágio a palavra é mal escolhida), mas vão ser, e bem, deixados em paz – quem vai levar pela medida grande são as empresas de energia, diz a Fuehrerin von der Leyen – as que se dedicam às energias fósseis porque tais actividades são maléficas para o ambiente e as boazinhas das renováveis porque, à boleia das outras, também estão a encher o baú. Os contornos dos novos impostos decididos pela UE não são ainda claros, mas confiemos em que a sábia diplomacia portuguesa faça o que faz sempre: no fim, aterra aqui dinheiro grátis europeu.

Mais impostos, em suma, para os outros – isto não toca o cidadão comum, que por isso aprovará. A velha história do sapo e da panela de água que se aquece lentamente, sempre.

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