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Delito de Opinião

Convidado: SAMUEL DE PAIVA PIRES

Pedro Correia, 31.07.17

 

Da incapacidade crónica para debater civilizadamente

 

Há uns dias, André Freire escreveu um artigo intitulado “Sete razões para não votar Fernando Medina nas autárquicas”. O artigo tece várias críticas à gestão camarária da capital, dando particular relevância às questões das obras públicas e da mobilidade, não se enredando em querelas ideológicas ou partidárias. Ainda assim, numa época em que as redes sociais potenciam o efeito de câmara de eco e contribuem para o entrincheiramento de partes em contenda ideológica e/ou partidária, que não se coíbem de fazer concursos de ortodoxia, passar certificados de pureza ou impureza ideológica e protagonizar purgas dos impuros que apresentem qualquer desvio ao que deva ser a linha orientadora da respectiva tribo política, não deixaram de surgir críticas ao artigo, em especial no mural do autor no Facebook, assentes em argumentos como os seguintes: “isto não é de todo uma postura de esquerda e fundamentada que nos tem feito crer como sendo a sua orientação”; “Esta gente de esquerda deviam (sic) ter cuidado no que escreve. Parece que estou a ouvir a cristas (sic)”; “O Sr. André Freire a fazer a política da direita! O povo não dorme e lhe irá dar a resposta em 1 Outubro de 2017...”

 

Dir-me-ão que, vindas de perfeitos desconhecidos, e atendendo aos níveis reduzidos de cultura democrática e pluralista e de preparação para o debate político civilizado do cidadão médio (se dúvidas houvesse a este respeito, as caixas de comentários dos blogs e jornais e as redes sociais esclareceram-nas), estas críticas não assumem especial relevo. Afinal, é pública e notória a hemiplegia moral, nas palavras de Ortega y Gasset, de que muitos sofrem, tornando-os incapazes de manter um debate civilizado com aqueles que perfilham outros pontos de vista (o mesmo Ortega y Gasset adoptava o perspectivismo, ou seja, a lógica tópica aristotélica, revitalizada no século XX pelo jurista alemão Theodor Viehweg, segundo a qual os diferentes pontos de vista sobre uma mesma realidade são complementares e as diferenças e peculiaridades, ao invés de obstaculizarem a procura da verdade, permitem captar certas porções da realidade). Contudo, às tantas surge uma conhecida historiadora, Irene Pimentel, que demole o artigo de André Freire não com argumentos, mas com esta prosa: “detesto todo o artigo, discordo dele, e nem percebo o interesse...”. Instada por André Freire a produzir argumentos, seguiu-se uma discussão em que Irene Pimentel passou o certificado de impureza, “Agora não me venha dizer que é de esquerda. Aliás fartei-me...”, ao que o autor do artigo replicou “já cá faltava essa da proprietária exclusiva e que passa certidões a dizer quem é e não é de esquerda!... passe bem minha senhora!”, e a historiadora treplicou “idiota mal criado. Sim, sou de esquerda. E deixe de me convidar para apresentar livros seus, por favor... Não se esqueça que eu tenho memória. Mas que mal educado, arrogante. Não passe bem. Vou eliminá-lo.”

 

Portanto, alicerçada na sua preferência ideológica ou partidária, Irene Pimentel sentiu-se no direito de purgar André Freire da sua tribo política, de o insultar e de revelar publicamente um convite privado que este lhe terá dirigido. Estamos a falar de alguém que, por defeito, deveria ter a capacidade de debater com elevação e não cair no insulto fácil. Infelizmente, parece-me que John Gray está certo ao considerar que a acepção oakeshottiana da política, que a entende como uma conversação, uma forma de acomodação de diferentes perspectivas, foi quase totalmente perdida. De facto, aquilo que Oakeshott classificava como política racionalista, a política do livro ou da cartilha ideológica, impera na política contemporânea, complementada por uma forte personalização da política que leva a que as tribos imponham ortodoxias, censurem heterodoxias, escondam e desculpem os defeitos dos seus membros e exaltem os dos membros das tribos opostas, sendo capazes de criticar ou defender uma mesma decisão ou atitude consoante a pertença ideológica ou partidária de quem a toma – como diria Sir Humphrey Appleby, “Where one stands depends upon where one sits”.

 

Existirá, porventura, alguma razão para que alguns partam para a discussão no debate público ou político a partir de um pedestal de superioridade moral a que se alcandoram? Creio que não. Alguns, à esquerda, ainda acreditam na possibilidade de uma ideologia científica, que julgam ser aquela que professam; outros, à direita, crêem que o alegado fim da história de Fukuyama lhes deu razão; muitos pensam estar do lado certo da história (como se esta fosse a Força do universo Star Wars); mas a esmagadora maioria considera-se moralmente superior apenas por mera convicção individual, um viés cognitivo que o neurologista Robert Burton explora em On Being Certain.

Infelizmente, na época em que vivemos, a humildade e a honestidade intelectual parecem não assistir a indivíduos que as deveriam fomentar e que, assim, acabam por se barricar em redutos assentes em racionalismos ideológicos ou meras convicções pessoais. O mesmo é dizer que em vez de utilizarem a força da razão, recorrem à razão da força. E como escrevi há uns anos, do debate num espaço público caracterizado pela cacofonia, onde a discussão é quase sempre dominada por surdos que sofrem de hemiplegia moral, (…) aos gritos uns com os outros, não pode surgir razão alguma.

 

 

Samuel de Paiva Pires

(blogue ESTADO SENTIDO)

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