Convidado: RUI MONTEIRO
Litoral é Lisboa e o resto é paisagem
Portugal é um país com fortes assimetrias territoriais de desenvolvimento económico e social, ponto final parágrafo. É assim que o tema da coesão nacional é apresentado: uma afirmação sem explicação. Há sempre um subtexto, o “vocês sabem do que estou falar”. O subtexto, o que todos damos como adquirido, é que o litoral se opõe ao interior, o urbano ao rural, as áreas metropolitanas às cidades médias, dando origem a diferentes jogos de soma nula. A dicotomia entre Lisboa e o resto do país também faz parte do subtexto, mas as razões são mais ideológicas do que de facto, resulta do centralismo para uns e da inveja dos caciques da província para outros, não existindo unanimidade ou a unanimidade é que tudo se resume a um Porto-Benfica.
Como os antecessores, este Governo também decretou que a dicotomia justa era entre o litoral e o interior e criou uma Unidade de Missão para o Interior para a dirimir.
Procura-se analisar essa dicotomia através do Produto Interno Bruto (PIB) por habitante. Parafraseando Winston Churchill, é o pior indicador de análise da convergência real, com excepção de todos os outros. Por razões compreensíveis, retiram-se os Açores e a Madeira desta análise. Por simplificação e dada a ausência de informação com outro recorte espacial, admite-se que o litoral é constituído por todas as regiões NUTS III que fazem fronteira com o Oceano Atlântico, por mais pequena que seja, e o interior pelas restantes. O litoral apresenta um PIB por habitante superior em 8 pontos percentuais (p.p.) à média do Continente, enquanto essa diferença relativamente ao interior ascende a -22 p.p.. Analisadas assim as assimetrias, este diferencial de 30 p.p. permite afirmar que o litoral e o interior apresentam níveis de desenvolvimento diferentes.
Se se retirar a região NUTS III da Área Metropolitana de Lisboa do litoral, as comparações permitem conclusões diferentes. O litoral e o interior apresentam um PIB por habitante inferior à média do Continente de, respectivamente -7 p.p. e -22 p.p., enquanto essa relação da Área Metropolitana de Lisboa é precisamente inversa de +31 p.p.. A diferença entre o interior e a Área Metropolitana de Lisboa (53 p.p.) é cerca de três vezes e meia superior à diferença entre o interior e o litoral (15 p.p.). Não parece que a dicotomia entre o interior e o litoral explique as assimetrias de desenvolvimento ou, se explica, como muitos afirmam, incluindo o Governo, então é porque só a Área Metropolitana de Lisboa faz fronteira com o Oceano Atlântico.
Esta é uma análise positiva, do que é, não permitindo um juízo normativo, do que deve ser.
Depois da correcção dos principais desequilíbrios macroeconómicos decorrentes da negociação entre o Estado português, por um lado, o FMI, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, por outro, do Programa de Assistência Económica e Financeira, a principal preocupação da política económica continua a ser a do endividamento externo globalmente e de cada um dos sectores institucionais (Estado, famílias e empresas). Qualquer juízo normativo deve ser efectuado tendo em consideração esta preocupação, procurando tirar lições de experiência para o futuro, dado que ninguém pretende regressar ao passado recente.
A balança de mercadorias (exportações-importações) das diferentes regiões NUTS II do Continente expressa em percentagem do PIB é a seguinte: no Norte é de +11%, no Centro de +9%, no Alentejo de +6%, no Algarve de -1% e na Área Metropolitana de Lisboa de – 26%.
Um dos factos estilizados da economia portuguesa é o seu persistente défice da balança comercial. Embora não se disponha de informação regionalizada relativamente à balança de serviços e ao comércio inter-regional, pode-se afirmar, mesmo assim, que em termos absolutos e relativos a Área Metropolitana de Lisboa é o principal território responsável por esse défice persistente da economia portuguesa. Sendo a região mais rica do país, também se admite que apresente um défice da balança de rendimentos e transferências. Os dois défices só podem ser compensados por uma posição superavitária nas balanças de capitais e financeira. Estas posições têm o seu simétrico nas outras regiões do país e, em particular, nas suas regiões mais pobres (Norte e Centro).
Não se trata de qualquer juízo moral, de que os lisboetas vivem acima das suas possibilidades, mas tão-só de constatar que as necessidades de investimento da Área Metropolitana de Lisboa não são financiadas pelas poupanças dos seus residentes, sendo oriundas não só do exterior do país como das regiões mais pobres, minando o seu potencial de crescimento futuro e tornando a execução dos fundos europeus pouco eficaz na correção de assimetrias de desenvolvimento e na convergência real.
Esta é uma situação comum em países pouco desenvolvidos ou de desenvolvimento intermédio, mas não em países mais desenvolvidos com os quais nos queremos comparar no contexto da União Europeia.
O facto estilizado que marcou a economia portuguesa durante o processo de convergência nominal que antecedeu a criação do Euro e após a instituição da moeda única foi o excesso de investimento em sectores produtores de bens e serviços não transacionáveis, muito dele assente no simples rentismo (“rent-seeking”) e em rentistas (“rent-seekers”), aos quais não é indiferente a concentração em Lisboa e na sua área metropolitana do poder político. Este investimento inflacionou os respectivos preços dos bens e serviços, alterando a sua relação com os preços dos bens e serviços transacionáveis, apreciando a taxa de câmbio real, reduzindo a competitividade externa e aumentando o endividamento, público e privado.
Procurou-se explicar que as assimetrias de desenvolvimento estão associadas ao endividamento externo e vice-versa, num processo que se autoalimenta e se amplifica, gerando um círculo vicioso. A identificação e a caracterização de um problema não transportam em si mesmas a solução. Não há, nunca há uma só solução. Nos países mais desenvolvidos da OCDE uma parte da solução tem passado pela distribuição territorial do poder político de acordo com o princípio da subsidiariedade, sujeitando-o a maior escrutínio público e democrático, para se evitarem problemas do rentismo. A esta solução chama-se descentralização. É condição necessária mas não suficiente.
É necessário canalizar também o investimento para sectores produtores de bens e serviços transacionáveis, que, por estarem expostos à concorrência internacional, apresentam maior potencial de aumento da produtividade e de transformação estrutural da economia portuguesa. Esta aposta não é neutra em termos territoriais e depende da orientação a dar aos fundos europeus no atual e no próximo período de programação. Não se alteram os perfis produtivos dos territórios do dia para a noite. Uma aposta desta natureza não pode dispensar as regiões com maior orientação exportadora e conhecimento dos mercados internacionais e que, simultaneamente, apresentam PIB por habitante mais reduzido (Norte e Centro).
Se foi em nome desta solução que recentemente o Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD) fizeram dois acordos, então estaremos em presença de um pacto de regime, porque o regime nunca mais será o mesmo.
“Portugal é Lisboa e o resto é paisagem”, todos o dizemos e, aparentemente, teria sido o Eça de Queiroz a dizê-lo primeiro. Ao reler o capítulo VI de Os Maias não encontrei referência à paisagem que constitui o entorno de Lisboa e o resto do país, mas deliciei-me com o retrato irónico e cruel de uma elite decadente que sempre se considerou superior ao povo a que pertence. Esta frase permanece no nosso imaginário colectivo e dos principais decisores. A ideia que lhe subjaz é poderosa: o que é bom para Lisboa é bom para Portugal, dado que as duas realidades se confundem, um pouco à imagem da relação entre a General Motors e os Estados Unidos. É poderosa mas não é verdadeira. A correcção das desigualdades, isto é, o crescimento económico mais robusto das regiões mais pobres, permitirá um crescimento económico mais sustentável de Lisboa e de Portugal, um crescimento menos exposto a problemas de endividamento externo.
É necessário concentrar a atenção nas assimetrias que importam e não noutras que pouco ou nada importam nos termos em que são apresentadas, como se, num país com pouco mais de 200 km de largura e nas actuais condições de mobilidade de pessoas, de capitais, de bens, de conhecimento e de tecnologia, o desenvolvimento dependesse predominantemente do meridiano que ajuda a referenciar cada lugar.
Rui Monteiro