Convidado: RUI ÂNGELO ARAÚJO
Criar o futuro
Há talvez vinte anos, um fornecedor de produtos informáticos tentava convencer-nos de que a ausência de cedilhas e acentos no processador de texto do software que nos vendia não representava nenhuma limitação, já que no futuro, um futuro luminoso ali ao virar da esquina, esses detalhes da língua desapareceriam. Com o uso generalizado da informática, uma novilíngua agramatical impor-se-ia com naturalidade e júbilo, contra os info-excluídos velhos do restelo. Contudo, a empresa fabricante, apesar de estrangeira, não tinha as mesmas ideias visionárias do seu representante na província lusa: não tardou a haver actualizações do software que incluíam dicionário em português, com a vetusta cedilha e tudo.
O Público de há uns dias trazia um artigo de mais um destes seres tecnológicos ávidos de futuro, agora um espécime que, com espantosa presciência e originalidade, declara a morte do livro.
Não vale a pena perder muito tempo com o texto em si, a estultícia intrínseca da argumentação é suficiente para fazer dele um nado-morto. Interessa-me, porém, na medida em que um cadáver interessa a um médico-legista ou a um epidemiologista — ou talvez na medida em que interessa a um taxidermista —, interessa-me perder um minuto a identificar o gérmen de que se contamina a prosa e a determinar o instinto primitivo que leva alguém a cometer textos assim.
O preclaro articulista é designer e isso não diz nada sobre ele, porque nenhuma formação académica ou profissão determinam o brilhantismo ou a burrice do utilizador. Mas a malícia trouxe-me à memória aquelas revistas artísticas e literárias de gosto gráfico vanguardista que no dealbar do século XXI faziam sair do prelo páginas por vezes curiosas mas ilegíveis, como se na redacção se digladiassem o editor literário e um designer gráfico revanchista e este levasse a melhor. Não falo de experiências comemorativas do centenário modernista, com ideias futuristas de tipografia ou de mancha de texto, mas sim de ornamentação barroca, sobreposição e mescla de imagem, texto e formas geométricas, colorações infelizes e sem contraste, escalas inadequadas e caprichos afins que nas melhores das hipóteses pediam lupa e excelente iluminação e nas piores não deixavam de todo o ler o texto, caso ele fosse para ler.
Quando o designer é em simultâneo amante de literatura sabe que nos livros e revistas, independentemente do suporte, o seu espaço de trabalho fica nas margens do texto, mas já nem sequer como nos fólios medievais, que a página precisa de respirar. Tirando tipografia, capas, folhas de rosto, índices, marcas de capítulos, etc., não há muito a fazer, quem lê não quer perturbações no seu campo visual, e quem escreve — a não ser que esteja em fase Apollinaire ou Mallarmé, ou pretenda ter o seu momento de fusão disciplinar, de importação gráfica de meios comunicacionais contemporâneos — também não quer dar ao seu leitor mais trabalho do que o de mergulhar no texto.
Mas atrevo-me a dizer que para o articulista do Público o livro não está a morrer por incompatibilidade com as novas realidades e interesses do design digital ou tecnológico. O livro morre porque os opressores devem morrer. É a emancipação da mediania (ou da mediocridade), por perversão democrática, que exige a condenação do livro. O autor, ao contrário do que diz e possivelmente acredita, não prevê o fim de uma época, mas exprime o desejo de um mundo à sua medida. Adivinha-se pelo artigo que a sua relação com o livro é a de vítima, não de cúmplice ou amante. Vítima por ter sido em algum momento do seu desenvolvimento traumático obrigado a pegar num contra a vontade. Vítima por o torturar a mera ideia de permanecer em silêncio algumas horas com um livro na mão. Vítima por ter intuído a sua condição de plebeu perante uma certa aura aristocracia dos literatos (uma classe na verdade hoje decadente ou pouco influente, mas que ainda provoca ódios e rancores, nem que seja pela memória do seu antigo ascendente social — o ressentimento, já se sabe, exige retroactivos e transmite-se por via genética).
Como o meu vendedor de software de há vinte anos, o cidadão médio, de que o nosso designer parece distinto exemplar, sonha com um mundo à sua imagem, sem cedilhas ou outras extravagâncias intelectuais que atrapalhem a irrequietude púbere e impaciente do frenético admirável mundo novo. Sonha com um mundo em que todos têm um só olho e ninguém é rei. É decerto fã do Got Talent.
Num outro texto, de 2014 (sim, dei-me ao trabalho de procurar outros cometimentos do articulista), o designer, ignorando o dicionário, enuncia translucidamente a sua condição, mas não da forma que imagina:
«Gosto de acreditar que, nós designers, somos “futurologistas”. Ou seja, somos peritos a criar o futuro, ou pelo menos a prever ou a antever os tempos ...» [Sublinhado meu.]
A chave está de facto em criar o futuro, não em prevê-lo. Designers ou sapateiros (a profissão é irrelevante), o wishful thinking que estes indivíduos tomam por pensamento filosófico e visionário transforma-se em gesto criador quando decidem não ler livros. E o gesto criador ascende a verdadeiro Genesis quando toda uma multidão decide eleger os seus iguais, confundindo democracia com mediocracia.
Rui Ângelo Araújo
(blogue OS CANHÕES DE NAVARONE)