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Delito de Opinião

Convidado: ROBINSON KANES

Pedro Correia, 28.08.17

 

Comuniquem menos mas falem, dialoguem e façam mais

  

Nos últimos tempos temos assistido ao discurso do "comunique mais, fale menos". Aliás, os auto-intitulados grandes comunicadores e muitos seguidores desta tendência apregoam a mesma aos sete ventos como a pedra-de-toque para resolver todos os problemas. A comunicação não vive por si só: funciona como mensageira e tem um objectivo concreto que implica a existência de uma base e de um trabalho de rectaguarda. Não se comunica primeiro e se faz depois, ou simplesmente não se faz. Não estou também a fazer um ataque à comunicação, bem pelo contrário, ou não fosse um acérrimo defensor de uma boa comunicação, seja em que contexto for. Aqui, debater-me-ei em questões práticas do nosso quotidiano, das organizações, e não na óptica publicitária.

Comunicar passou a ser a palavra de ordem, ao invés do falar e, consequentemente, um retrocesso de mentalidades camuflado com um discurso de contemporaneidade. Reparem como chamamos comunicação a muita propaganda. Propaganda traz-nos más memórias, mas basta alterar o conceito e...

Vende-se também a ideia de que todos podemos ser bons comunicadores e que basta dominar as "10 coisas que as pessoas altamente bem sucedidas fazem para comunicar" ou os "10 segredos de Saturno para agradar aos seus anéis" para o sucesso ser garantido. A comunicação é fundamental mas, por si só, não cria nada, todavia, tem um poder infinito para o bem e para o mal.

 

Também podemos sempre adoptar a postura oriental do "Comunicachim Tai Chuan" ou a dos "Monges Palradeiros de Sarnath" e comportarmo-nos como autênticos robôs, desprovidos da nossa personalidade e do nosso eu. Quem é que nunca assistiu a uma palestra ou àqueles seminários onde o conteúdo é carregado de lugares-comuns ou simplesmente não existe, mas os braços do orador, o olhar e a voz parecem uma sessão de break-dance?

Em tempos, assisti a uma conversa em que os aduladores de uma personagem discutiam o movimento da árvore e os ramos bem como a inspiração na natureza com que o alvo da sua adulação assumia o discurso e consequentemente exaltava o seu eu. Discutia-se e acarinhava-se a postura do "grande líder", já o que o mesmo dizia não era importante.

Comunicamos também por SMS, email, ou numa só direcção (por norma, a nossa) mas na realidade quão eficiente será essa comunicação? Será que estamos mesmo a acrescentar valor ou a mudar alguma coisa? Como é que com tantos profissionais da "arte de comunicar" ainda não conseguimos evoluir praticamente nada e no seio das organizações a comunicação continua a ser o maior dilema? Porque se gastam milhões em programas de formação em comunicação e os erros continuam?

De facto, também sugiro que se comecem a escolher os fornecedores destes serviços pelos resultados e não pela comunicação que muitos fazem...

Penso que a questão está mesmo aí: comunicamos demais, preocupamo-nos muito com a embalagem da mensagem, mas esquecemos o fundamental, que é o seu conteúdo e o que leva à mesma.

 

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  William Turner - War. The Exile and the Rock Limpet (Tate Britain)

Fonte da imagem: própria

 

De que me vale ter um discurso altamente trabalhado, mexer os braços como um polvo, atirar ideias para o ar se depois não existe um seguimento nem interacção entre pares?

De que me vale comunicar se o foco está em mim e não nos outros?

Comunicar não é fazer discursos, não são textos altamente burilados ou ocos, não é ser robótico na abordagem, não é achar que o comunicador sou eu, até porque a comunicação tem mais que um sentido. Entendo que a abordagem é utilizar o falar como contraponto ao comunicar e assim criar um novo conceito, mas não estará a comunicação a matar o falar e consequentemente a matar-se a si própria? Nomeadamente a sua essência?

É que tudo isto resulta bem quando estamos a falar numa direcção com um headset colocado na cabeça para uma multidão. Mas no dia-a-dia?

 

De que me vale ter uma brilhante comunicação interna na minha organização, por exemplo, se depois as minhas chefias intermédias não falam com as pessoas?

De que me vale ter standards de apresentações, emails e tudo o mais e os problemas não se resolvem porque ninguém fala?

De que me vale comunicar by the book e com isso nem me dar conta que estou a criar uma ditadura do politicamente correcto esquecendo que os disruptivos podem ser a chave para a inovação ou a solução de muitos problemas?

De que me vale comunicar se nem domino, e muito menos promovo, capacidades como a disciplina, a criatividade, o respeito, a capacidade de síntese (sob o ponto de vista de Howard Gardner, como uma capacidade integradora de várias áreas e disciplinas), a ética, a cooperação, o espírito critico e o pensamento estratégico - acrescentei estes três últimos pontos aos cinco defendidos por Gardner e que citei acima.

 

Nunca se comunicou tanto e já diz o povo que "é a falar que a gente se entende". É nestas coisas que o povo é sábio, porque todos os dias testa na prática a teoria que outros nunca ousaram tirar dos livros, dos discursos atraentes.

Lembro-me de um professor que, perante a pouca vontade dos alunos em fazer um exame, optando por substituir o mesmo por um trabalho de grupo/apresentação, respondeu: "e quando a bomba vos cair nas mãos e tiverem de resolver os problemas, vão dizer esperem aí que vamos fazer um trabalho de grupo?". Não é raro ver indivíduos da “velha-guarda” a falarem e a resolverem um problema no imediato enquanto outros preferem comunicar e levam dias a resolver um problema. Quem me conhece sabe que sou das pessoas que mais se empenham em processos de mudança, mas também tenho de reconhecer que varrer tudo o que está para trás nem sempre é a melhor estratégia.

 

Deixaria a sugestão: façamos mais, falemos e dialoguemos uns com os outros e comuniquemos menos.

Comuniquemos aquilo que fazemos ou queremos sem cair no ridículo, pois não são raras as vezes em que a comunicação se encontra desfasada da realidade e em nada alinhada com o nosso comportamento...

Foquemo-nos no nosso cérebro social (hipótese cientifica que defende que os seres humanos têm um cérebro maior, comparado com outros vertebrados, maioritariamente devido à nossa necessidade de manter um registo e aplicação da nossa interacção social) para desenvolver a nossa comunicação e consequentemente beneficiarmos mais quem nos ouve e menos a nossa pessoa, ou, numa lógica mais solidária, beneficiarmos ambos da mesma forma e com claras implicações com o bem-estar que por cá tende a ser confundido erradamente com wellness.

 

Uma outra nota: deixemos as teorias e o discurso da comunicação ir além daqueles que já estão em posições de chefia ou são patrocinados pelos media. Pode ser que assim possamos adequar esse discurso àqueles que ainda são afastados deste processo. Não podemos defender a nossa teoria se estamos a excluir aqueles que mais podem beneficiar dela... Pode trazer-nos menos retorno nas contas ao final do mês, mas no longo prazo pode ser um activo de valor incalculável.

Deste modo, o segredo do sucesso não está na comunicação, pelo menos para quem não quiser ser oco e comportar-se como uma carapaça de tartaruga sem conteúdo ou como um perfil de LinkedIn vistoso que esconde uma pessoa sem miolo. De facto, a comunicação ajuda, mas se o foco incidir somente sobre esta, corremos o risco de navegar no vazio, aumentar a entropia nos processos, criar um mundo paralelo e no médio prazo perder a confiança daqueles a quem pretendemos fazer chegar a nossa mensagem, ou não fossem célebres as palavras de Lincoln: "É possível enganar toda a gente durante algum tempo, aliás é até possível enganar sempre algumas pessoas, mas não nos será possível enganar sempre toda a gente."

  

 

Robinson Kanes

(blogue NÃO É QUE NÃO HOUVESSE...)

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