Lembro-me de haver sempre livros à minha volta. Quando era pequeno eles eram muito poucos e por isso muito mais preciosos. A escassez fazia-os gozar de uma procura que levava a que fossem partilhados repetidamente.
Ainda antes de eu saber ler, o meu irmão e o meu primo já tinham lido todos os livros que existiam nas duas casas. Sempre que o magro espólio era aumentado nenhum dos dois aceitava esperar pelo outro e acabavam a ler em simultâneo. O mais rápido esperava uns segundos pelo outro para só então se virar a página. Lembro-me de os ver assim, sentados no último degrau da escada, lado a lado, ora a interiorizar a mensagem ora a ver qual dos dois lia mais rápido. Tal como na natureza, após a escassez vem a sofreguidão. Para saborear não se pode ter fome e eles, que já salivavam antes de abrir a primeira página, liam tudo sem mastigar e sem se preocupar com a digestão.
Eu via aquilo e queria também poder aceder àquele mundo que só existia quando as páginas se abriam. Esse mundo era frequentado por diversas pessoas da família de diferentes gerações. A muito partilhada lista de títulos fazia dos nossos livros um ponto de passagem que mais tarde ou mais cedo todos palmilhavam. Tornavam-se por isso também num ponto de encontro.
Quando finalmente aprendi a ler, a lista do títulos disponíveis nas nossas casas já era um pouco mais generosa e foi crescendo sempre sem nunca mais parar. Nunca tive de ler à desgarrada e nunca soube de mais ninguém que o tivesse feito.
Olhando para as gerações mais recentes, nenhum membro da nossa família alargada partilha o gosto por ler com semelhante intensidade. Todos consomem a maior parte dos tempos livres à frente de ecrãs.
Será que estamos a caminho de um mundo onde, como antes de Gutemberg, os livros voltarão ser lidos apenas por uma minoria?
Da mesma forma que a fotografia não matou a pintura, nem a televisão matou o cinema, também não serão os suportes electrónicos que matarão o livro. Mas mais do que perguntar se os novos suportes são complementares ou alternativos ao livro impresso, a dúvida que me coloco reside na capacidade e na disponibilidade intelectual de quem cresce como espectador passivo em frente de ecrãs. Que capacidade de interpretar, ou até de fantasiar, sobre o que do passado chegou até aos nossos dias terá quem não conhece o cheiro dos livros?