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Delito de Opinião

Convidado: OLAVO RODRIGUES

Pedro Correia, 16.01.18

 

O que é realmente um erro linguístico?

 

Ao abordar esta questão, surgem sempre dois tipos de defensores: os mais conservadores e os mais liberais. Os primeiros opinam que, para que uma língua seja bem usada, esta tem de ser regida por regras que se reconhecem como sendo canónicas e aceitáveis, as quais estão relacionadas com a gramática e com a ortografia. Há alguns casos mais extremos que propõem distinções de qualidade entre as variantes de determinados países, incluindo, às vezes, as pronúncias também.

Por outro lado, existem os mais liberais que opinam que um idioma é inevitavelmente mutável em todos os seus campos, pelo que de nada serve tentar impor normas de fala, dado que, mais tarde ou mais cedo, as mesmas cairão em desuso. Por norma, estas pessoas não se importam com realizações linguísticas do género: «tu fizestes», «atão», «onteontem», entre outras. Algumas delas também concordam com a Reforma Ortográfica de 1990, precisamente por acreditarem que a língua, enquanto organismo vivo, necessita de uma mutação constantemente activa.

 

Nos dois grupos existem diversos graus nas suas inclinações, contudo, será que algum deles alguma vez conseguiu ou conseguirá, de facto, responder à questão: «o que é realmente um erro linguístico?»

Eu não pretendo encontrar uma verdade absoluta para este tópico, pois a minha opinião, à semelhança da de toda a gente, vale o que vale e duvido muito de que surja uma resposta infalível a esta pergunta, considerando que os próprios especialistas nem sempre chegam a um consenso. Contudo, não deixa de ser um novelo de lã com imensas pontas soltas que conduzem a um mundo enorme de conhecimento e reflexão.

 

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Comecemos, então, pelo seguinte: o que é um idioma? É um sistema de representação do mundo que tem determinados padrões na fonética, na gramática e no léxico, no entanto, embora haja sempre pontos em comum que se identificam na mesma língua, também existem imensas variantes quando o seu número de falantes é grande, como é o caso do português.

Partindo deste princípio, constata-se que o critério para considerar não-preferencial uma certa realização linguística é um pouco abstracto e funciona como uma espécie de espiral.

O círculo central é a variante-padrão e os que o rodeiam costumam ser considerados formas desviantes. Quanto mais afastados do centro, menos aceitáveis parecem. Em português dizer, por exemplo: «duvido de que faças isso» parece ser o ideal; «duvido que faças isso» já é um pouco desviante e «isso faças duvido que» não é aceite pelo sistema interno de reconhecimento de nenhum falante.

Porém, visto que uma língua é bastante rica em diversidade e está em constante mudança, há sempre estruturas a competir pelo reconhecimento, o que leva a que exista uma área cinzenta na qual é difícil escolher uma forma canónica, tendo em conta que as várias opções são todas muito usadas e que as gramáticas e dicionários nem sempre estão de acordo relativamente à mesma questão.

Pegando no exemplo que dei acima, é possível verificar esta ocorrência. À luz do meu conhecimento pessoal, já não é nada raro encontrar construções do tipo «duvido que» e não me refiro apenas à oralidade ou a textos informais. Quer em traduções, quer em textos originalmente escritos em português, tem-se tornado bastante comum a ausência da preposição «de» antes do pronome relativo «que».

 

Por enquanto, a presença da preposição ainda é a mais canónica, uma vez que, se o verbo a requer noutros casos, como em «duvido disso», então, faz sentido que se adicione «de» a todas as construções. No entanto, devido ao facto de que um idioma se encontra em mutação constante, daqui a alguns anos aparecerá, novamente, o choque entre conservadores e liberais - quase parece que estou a falar de política - umas gramáticas, menos receptivas à mudança, rejeitarão a forma recém-chegada e outras, adeptas da sua existência, aceitá-la-ão.

Ainda não se chegou a uma conclusão satisfatória. Por um lado, se uma determinada estrutura pode vir a tornar-se canónica, porquê resistir à naturalidade das alterações? Por outro, se não houver uma distinção restrita do que é certo ou errado, toda a gente falará e escreverá sem o conhecimento correcto, o que talvez origine indisciplina, dificuldades na comunicação e distorção da mensagem intrínseca no discurso.

 

Na minha mais sincera opinião, gostava de evitar a definição «erro». Nesta crónica não se atribuirá esse rótulo, isto porque a preferência de certas realizações idiomáticas não tem a ver com a linguística, mas sim com o meio socio-cultural e tem sido sempre assim em todos ou, pelo menos, em quase todos os países. Eis uma citação que o demonstra: «Grammatica (...) é um modo çerto e justo de falár e escrever, colheito do uso e autoridade dos barões e doutos.» (J. Barros, Grammatica da Lingoa Portugueza, 1540).

O/A leitor/a poderá pensar que a afirmação acima está desactualizada em relação ao nosso tempo e, de facto, de certo modo, tem razão, pois escrever algo assim nos dias de hoje não seria visto com bons olhos, no entanto, há que reconhecer que sempre existiu uma parte que se destacou para representar um todo.

 

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No caso do português europeu, o dialecto lisboeta tomou a dianteira, dado que, culturalmente, Portugal se tem centrado muito em Lisboa ao longo da História, da mesma maneira que, em 1540, eram as classes privilegiadas que definiam o que era correcto dizer e escrever.

Levando em consideração que todas as culturas, desde que não infrinjam os direitos humanos, têm o mesmo valor e dignidade e que a língua faz parte da cultura, então, há que pôr a hipótese de que dizer «tu fizestes» numa aldeia do Norte Interior é tão acertado como dizer «tu fizeste» em Lisboa, visto que se avalia o que é correcto através da norma linguístico-cultural em determinada região, independentemente de essa corresponder ou não à variedade canónica. Estamos a falar de variantes não de erros. 

Não tenciono afirmar, com esta óptica, que um/a lisboeta não pode combinar «tu» e «fizestes» ou que um/a nortenho/a não deve conjugar a forma da segunda pessoa do singular, no Pretérito Perfeito, sem o «s». O meu objectivo é assinalar que as estruturas gramaticais desviantes também merecem o seu lugar por pertencerem à nossa língua.

 

É verdade que se registam certos padrões nas mais diversas regiões, mas isso não significa que tenhamos de corrigir alguém amiúde quando nos apercebemos de que lhe escapou uma regra canónica.

Eu contra mim falo, pois, antigamente, tinha o hábito irritante de corrigir os meus interlocutores mais chegados. Todavia, agora olho para trás e pergunto: será que era mesmo importante? Muitas pessoas não nutrem nenhuma paixão pela linguagem, só se servem dela para cumprirem as tarefas do seu quotidiano, por isso, será que é mesmo produtivo impor-se-lhes regras que quiçá não venham a usar na sua vida profissional? Saber não ocupa lugar, porém, creio que ganharíamos muito mais se direccionássemos o esforço para a tolerância e para aqueles que estão realmente interessados em seguir a variedade-padrão.

Este raciocínio também se aplica à relação linguística entre países, pois creio que neste contexto também não deve haver competições deste tipo, as quais só costumam gerar ruído e nenhuma conclusão produtiva.

Digo isto, porque sempre que me dirijo à caixa de comentários do YouTube para ler as opiniões do público acerca de uma partilha cultural, geralmente entre Portugal e o Brasil, há imensas pessoas xenófobas dos dois lados do Atlântico que entram num conflito ridículo para disputar quais as melhores variante e cultura.

 

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Em Portugal algumas pessoas acreditam que o português brasileiro já é um idioma diferente, ponto de vista esse de que discordo, mas que respeito desde que os seus defensores abandonem a arrogância xenófoba, a qual é tão característica de alguns.

O único campo em que, do meu ponto de vista, é possível falar de erros, é a ortografia pelo facto de não ser uma parte do corpo da língua, mas sim um instrumento, ou seja: um idioma tem, naturalmente, como bases principais: a pronúncia, a sintaxe, a semântica e o vocabulário.

Todavia, a ortografia é uma invenção posterior e especificamente criada para servir a língua, não tendo nascido com ela. É possível haver um idioma sem ortografia, mas não sem as outras áreas anteriormente mencionadas.

A ortografia é algo legislado que, ao contrário, dos outros campos linguísticos, não se altera de forma autónoma, o que lhe confere, a meu ver, o estatuto de ferramenta e não de órgão.

 

Para terminar, não pretendo, com esta crónica, sugerir que a homogeneidade deve ser ignorada, tendo em conta que o ensino e a difusão do idioma necessitam de alguma coerência de modo a não confundir os aprendentes - nativos ou não - e para que a comunicação em massa seja o mais clara possível.

Contudo, é também preciso considerar o contexto em que usamos determinadas maneiras de falar e de escrever, não excluindo variantes que, provavelmente, sempre existiram e contribuíram para a riqueza da nossa língua. O que as distingue das formas canónicas é o facto de nunca terem sido acolhidas pela literatura, pelo jornalismo, pela política ou por outros, o que não lhes tem permitido alcançar o centro da espiral.

Assim sendo, quando se fala em erro linguístico, há que especificar qual é o objectivo do/a escrevente ou do/a orador/a, bem como o meio social em que vai comunicar. Usar uma variante não-canónica é adequado a uma conversa de café ou a uma SMS, mas não a uma palestra ou a um ensaio.

A variedade-padrão do português europeu tem os traços que hoje conhecemos, porque a sociedade e a cultura portuguesas a definiram dessa maneira, porém, podia ter quaisquer outras características igualmente aceitáveis.

 

 

Olavo Rodrigues

(blogue TOCA DO COELHO)

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