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Delito de Opinião

Convidado: JOÃO FREITAS FARINHA

Pedro Correia, 25.08.17

 

Viajar ou o elogio da aventura

 

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Estados Unidos da América, Dezembro de 2015, 2h da madrugada. Conduzíamos rumo a Boston, na única etapa da viagem que não tinha sido planeada. Tinhamos feito cerca de dois terços de uma viagem de 900 km e a neve não dava tréguas. O ponteiro da gasolina estava a descer ainda mais que o da temperatura. Nada de preocupante, o GPS tinha a indicação dos postos de combustível. Primeiro posto - falhámos a saída. Não fazia mal, havia outro, umas dezenas de km mais à frente. Estava fechado. Com a gasolina já na reserva, o GPS não dava indicações de postos próximos. Para ajudar, a estrada tornava-se cada vez mais escura e estreita. Outros carros, nem vê-los.

Com o carro já a funcionar à base de fumos e boa vontade, eis que, qual oásis no meio do deserto, surge a placa com a palavra mágica. "GAS".
Finalmente! Parámos o carro e dirigimo-nos à funcionária da bomba, do outro lado do vidro. Sorriso nos lábios. Estávamos salvos!

— "Please, can we put some gas?"

— "No. This station is closed."

—  "But we came from so far away, please let..."

— "GO AWAAAAY. I'LL CALL THE POLICE. GO AWAAAAAAAAAY. GO AWAAAAY. I'LL CALL THE POLICE. GO AWAAAAAAAAAY".

Afinal não. Não íamos pôr gasolina.

No meio do nosso desnorte, ainda tivemos lucidez para olhar em volta. Mesmo ao virar da esquina, havia um hotel. Milagre dos milagres, uma cama, finalmente! A gasolina podia esperar pelo amanhecer...

 

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Viajar também é isto. Vou-me sempre lembrar do gelo a estalar sob os meus pés, ao caminhar num glaciar; da paisagem deslumbrante após uma caminhada de quase 20 quilómetros até à base do Fitz Roy; de ver uma baleia de bossa a brincar com a sua cria; ou do entusiasmo incontido de quando entrei na Euro Disney. Mas também não me vou esquecer daquela vez em que o carro quase ficou sem gasolina no meio do nada. Ou quando ficámos uma semana retidos em Londres, sem malas e em vésperas do Natal, porque um nevão fechou os aeroportos.


Viajar também é vermo-nos em situações que são maiores que nós. Viver algo diferente do que temos em casa. Não no sentido de arriscar, ou ser inconsciente. Mas de dar espaço à espontaneidade e aceitar o imprevisto.

 

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Resorts e excursões. Tanta gente viaja com guião definido ao milímetro. Saltar de monumento em monumento. De fila em fila. Conhece-se uma cidade através de uma montra. E nunca se chega a sair do nosso pequeno mundo.

 

Eu planeio sempre o que vou ver, claro. Os monumentos, os museus, os parques. Compro bilhetes, contrato guias... Mas também adoro a sensação de me perder numa cidade. Saber o destino, sem conhecer o caminho. Andar pelos bairros, sentir o pulso do local. Pedir indicações, falar com quem lá vive.


Viajar é sair dessa nossa bolha. Só conhecemos realmente um sítio se também o virmos através dos olhos dos outros. Mudar a nossa perspectiva, aprender.

O acto de viajar é efémero, mas o que trazemos quando regressamos fica connosco para sempre.

 

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Parque Nacional da Terra do Fogo, Argentina, Outubro de 2015. Terminámos a nossa caminhada junto a uma placa de madeira, à saída do parque. Marcava o final da Rota Panamericana - Um conjunto de estradas que liga, quase sem interrupções, o Alasca a Ushuaia.

“Aqui finaliza la Ruta N. 3. Buenos Aires 3.063 Km. Alaska 17.848 Km.” - Dizia, em letras amarelas gravadas na madeira.

 

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Seria só uma placa, e não lhe teria dado grande importância, se no dia anterior não nos tivéssemos sentado à mesa de Carlos Alvarez. O Carlos foi guarda florestal durante largos anos. Agora, reformado, gosta de falar desses tempos.

Enquanto nos preparava ovos mexidos e chá para o pequeno almoço, cheio de orgulho e um brilho nos olhos, contava como tinha construído aquela placa com as próprias mãos. Quando nos preparávamos para sair, veio ter connosco. “Não se esqueçam de tirar uma fotografia à minha placa” - disse com um sorriso de orelha a orelha.

Terminámos a nossa caminhada junto a uma placa de madeira, à saída do parque. Marcava o final da Rota Panamericana. E para nós, nunca seria uma placa qualquer. Era a placa do Carlos.

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João Freitas Farinha

(blogue JOÃO FREITAS FARINHA - FOTOGRAFIA)

2 comentários

  • Muito obrigado pelo convite e pelas palavras elogiosas.

    Abraço.
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