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Delito de Opinião

Convidado: F. SEIXAS DA COSTA

Pedro Correia, 29.06.17

 

O amuleto

 

Os fins de tarde, naquele bar, são por regra uma hora bem sossegada. Tirando encontros furtivos de casais episódicos ou alguma conversa de negócios ou da política, só alguns espontâneos em busca de uma última bebida, antes do jantar, ocasionalmente por ali surgem, quase sempre ficando-se pelo balcão, em conversa com o empregado.
Naquele dia dos anos 90, só por lá havia dois amigos, na "mesa dois", fazendo horas. Ouviu-se a campainha, o Juvenal foi abrir a porta e um novo cliente dirigiu-se ao balcão. Os da mesa olharam-no e ele saudou-os.
"Aquela cara não me é estranha ", disse um para o outro. O nome surgiu logo, e era vagamente conhecido de ambos. "Pois é, é ele mesmo!" 
"O homem está ali sozinho. E se lhe disséssemos para vir sentar-se aqui?" Assim fizeram e o novo cliente, já com o copo na mão, trazido do balcão, sentou-se na "dois".
 
Por alguns minutos, a conversa animou-se, alargou-se a vários temas e pessoas. Foi então que o nome de uma certa personalidade feminina veio à baila. A imprensa de escândalos trouxera, por esses dias, relatos de um envolvimento amoroso dessa pessoa, num registo por alguma razão polémico.
"Nunca percebi o encanto dessa mulher! Para mim, é uma das mulheres mais feias do mundo, um verdadeiro amuleto contra a luxúria", brincou um dos ocupantes originais da mesa, com uma sonora gargalhada.
O amigo que o acompanhava não só concordou como juntou mesmo uma acha mais para a fogueira: "E, se vocês estiverem com atenção, verão que ela até cheira mal..." 
 
(Por esta altura, imagino que alguns leitores possam estar intimamente a reagir ao inaceitável tom machista da conversa. Aceito que podem ter razão, mas a realidade dos factos, que são verdadeiros, foi aquela e não outra, qualquer que seja os juízos que ela nos motive.)
 
O tom da conversa, como se observa, ia já muito longe, mas, aparentemente, não o suficiente para convocar a concordância do terceiro parceiro de mesa, que se mantinha silencioso, com um sorriso enigmático. "Você não acha?", perguntou um dos outros, testando a sua adesão ao juízo devastador que acabava de ser feito sobre a senhora.
Foi então que este, com serenidade e sem nunca perder o sorriso, reagiu: "Não estou de acordo! Pelo contrário, é uma mulher muito interessante. Tem mesmo um sorriso muito bonito. Essa foi também uma das razões que me levaram a casar com ela..."
 
O peso do silêncio que deflagrou sobre a mesa, com o olhar encavacado dos dois ocupantes originais a cruzar-se, em busca de uma impossível tábua de salvação, pareceu calar a música retro, que fazia de som ambiente. O recente parceiro de mesa, veio depois a saber-se, havia sido casado, já há uns bons anos, com a referida senhora e, por indeclinável dever, decidira "ir a jogo" para ajudar salvar a sua honra. 
A conversa, claro!, terminou ali, não havendo saída "honorable" para a gaffe, quando tudo fora já longe demais. "Ó Juvenal, traga uma nova rodada!", foi a reação possível. 
E esta ficou a ser uma das histórias mais famosas da "mesa dois" do Procópio. E é obra, porque ele há tantas...

 

 

Francisco Seixas da Costa

(blogue DUAS OU TRÊS COISAS)

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