Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Convidada: SARA BARROS

Pedro Correia, 18.12.17

 

A máquina de moldar raparigas

 

O famoso dicionário americano Merriam-Webster elegeu feminismo como a palavra do ano de 2017, baseando-se na intensa procura que o termo teve nestes últimos doze meses e que representou um aumento de 70% face a 2016. Mas talvez algumas pessoas se questionem que necessidade pode haver de feminismo numa sociedade desenvolvida em 2017 depois de tantas conquistas sociais.

Será um mero capricho ou uma necessidade real?

 

Tomemos como exemplo uma mulher, chamemos-lhe Mónica.

Folheemos brevemente o seu álbum de fotos. Aqui está ela com cinco anos: entretida com uma mini cozinha, com tachinhos e que até faz barulhos como uma verdadeira. Ela também tem muitas bonecas para alimentar e embalar, uma mini tábua de passar e até um mini avental. Todos estes objectos, tão variados, só se encontram na secção das meninas. Quando for para a escola Mónica até vai poder ter um manual de actividades rosa só para meninas.

Mónica com onze anos: sentada numa cadeira enquanto a mãe lhe limpa os joelhos esfolados depois de uma expedição científica ao quintal. "Já tens idade para te portares como uma menina a sério", diz a mãe. Mónica não sabe o que responder. Ela ainda não sabe que muitas mulheres antes dela também tiveram a sua natureza condicionada por esta ideia.

 

Esta agora é ela com catorze: deitada de barriga para cima na cama com os olhos fechados, meio neste mundo meio no outro. O seu sangue já não lhe causa espanto, embora nunca tenha chegado a perceber porque é que nos anúncios a pensos higiénicos ele nunca aparece com a cor que realmente tem. Mónica pensa que gostava de ser mais como as mulheres que vê na televisão. Mais como Mariana, sua amiga que tanta atenção já atrai. Mónica ama Mariana e às vezes gostava de lhe arrancar os cabelos. As mulheres sempre fazem isso umas às outras nos programas e nos filmes. É muito engraçado de se ver. Ser mais como as princesas que são sempre bonitas e meigas e que ficam com o príncipe enquanto as adversárias são castigadas.

Mónica pensa nisto enquanto está no shopping com Mariana à procura de um novo par de sapatos. As duas riem de algo picante que Mariana diz. Uma puta com gelado de baunilha a cair para a blusa e ainda a correr para os insufláveis. Mónica sabe que muito em breve aparecerá um rapaz que lhe dirá o quanto ela é bonita e especial apesar dos muitos defeitos que já catalogou em frente ao espelho. Talvez se ela se sentar mais direita, se encolher o estômago, se sorrir mais. Talvez se não tivesse comido o gelado. Não como Mariana, mas um pouco como Mariana. Entre a vergonha moral infligida e a pressão para ser um objecto sexual.

 

Mónica aos vinte: a caminhar pela rua já tarde. Mas é uma rua bem iluminada e com movimento. Uma lição que foi bem aprendida. Fingir que se é surda e muda. Para não acabar como Mariana que se recusava a mudar de rua e a ser surda, andou à chuva e molhou-se. Mónica lembra-se das vezes que ouviu pessoas brincarem com situações parecidas. Ou a fazerem piadas envolvendo carros mal estacionados.

Uma memória mais antiga: uma imagem no seu livro da escola. Um homem entra em casa, a mulher está a segurar um tachinho, há um crucifixo. Mónica achou aquilo um pouco ridículo mas quando ao jantar disse que não se queria casar os pais apenas riram e disseram que ela tinha muito tempo para se divertir antes de subir ao altar.

 

Aos vinte e seis: a almoçar uma salada só de alface no escritório. Pensando em conselhos que lhe deram recentemente. Que devia arranjar alguém, viver assim sozinha não era coisa para uma rapariga como ela tão bonita (Mónica pensa: onde devemos viver. É uma trindade), que devia investir na carreira (Mónica pensa: para-tudo-e se tiver de abdicar do-não serei mais-do resto-desejável para ninguém-há um tempo certo), que devia era sair mais (Mónica pensa: Mariana, porque me abandonaste), que não se devia esquecer do relógio biológico (Mónica pensa: o meu útero a explodir como uma supernova quando o tempo da bomba relógio chegar a zero e então o mundo acabará).

 

Com trinta e três: deitada de barriga para cima na cama com os olhos abertos, muito neste mundo e pouco no outro, enquanto ouve um respirar tranquilo ao seu lado. Disseram: finalmente, não estás mais sozinha. Mónica não respondeu.

Finalmente. Uma última foto: Maria com onze anos sentada numa cadeira enquanto a mãe lhe limpa os joelhos esfolados.

 

Agora sim, podemos fechar o álbum e voltar à pergunta inicial: é o feminismo uma necessidade real?

Vivemos numa sociedade que sob uma capa de falsa igualdade, quando não mesmo abertamente, permite e incentiva a existência de mecanismos de opressão contra as mulheres, forçando-as desde cedo a moldarem-se a estereótipos e a papéis arcaicos de género, a preencher exigências contraditórias e impossíveis, culpando-as pela violência contra si e minando a sua auto-estima. E no fim levando-as a perpetuar elas mesmas este sistema de desigualdade.

A resposta é sim.

 

 

Sara Barros

(blogue DESABAFOS AGRIDOCES)

8 comentários

Comentar post