Convidada: RITA I CARREIRA
Extraordinariamente normal
Na sequência dos incêndios de 15 de Outubro, foi noticiado que a Caixa Geral de Depósitos, onde estão depositadas partes dos donativos que os portugueses fizeram para apoiar as vítimas de Pedrógão Grande, irá doar cerca de meio milhão de euros aos hospitais de Coimbra para ajudar as pessoas afectadas pelos incêndios. Sendo Portugal um país onde há um sistema de saúde financiado pelos impostos pagos pelos portugueses, deve-se concluir que o Governo acha que pode tratar os donativos como um substituto de impostos.
Quando as pessoas fizeram estes donativos, decerto pensavam que o dinheiro iria ser directamente entregue às vítimas para as ajudar a reconstruir parte da vida que perderam – isto daria um bom inquérito aos portugueses, se houvesse algum meio de comunicação social para aí virado. Em vez disso, o governo achou por bem aumentar a capacidade dos hospitais de Coimbra em responder a incêndios. Um investimento em capital fixo permanente não faz sentido do ponto de vista de gestão dos hospitais, se o que se observou este ano é completamente anormal e fruto de vicissitudes meteorológicas combinadas com um excesso de optimismo na gestão dos recursos actuais.
Mas se o que se observou este ano deixar de ser uma situação considerada extraordinária, para ser encarada como normal porque não há “solução mágica”, como disse o Primeiro Ministro, em que o Governo espera que todos os anos haja incêndios que causem feridos suficientes para justificar este investimento, então a decisão do governo parece ser lógica. Digo parece ser porque não é necessário que seja.
Na gestão de recursos alocados a uma potencial tragédia há sempre uma escolha entre gastar o dinheiro em medidas reactivas ou medidas preventivas. Não me recordo de ver noticiado que os hospitais tenham tido capacidade insuficiente para lidar com as vítimas dos incêndios de Junho e agora com os de Outubro; mas, segundo própria admissão do ex-Secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes, há, ao nível da administração local, recursos insuficientes que requerem que os próprios cidadãos não contem com a protecção do estado, tendo dito “Não podemos ficar todos à espera que apareçam os nossos bombeiros e aviões para nos resolver o problema”. Ou seja, há sítios onde aplicar o dinheiro de forma a aumentar a capacidade de se prevenir o tamanho da tragédia.
Na quinta-feira antes dos incêndios de Outubro, que foi também o dia em que o relatório da comissão de peritos foi entregue no Parlamento, uma entrevista a Nádia Piazza, da Associação de Apoio às Vítimas de Pedrógão Grande, foi publicada no jornal i. Nela, a usurpação do poder pelo governo central e administrações regionais, que impedem os municípios de agir, é dada como uma das causas para a pouca resiliência do interior do país aos incêndios. Só que estes últimos incêndios demonstraram que mesmo em locais urbanos no litoral, como por exemplo Braga, um motor de crescimento do país, não há plano para manter a cidade segura. Outros factores apontados são um quadro legislativo caótico, havendo também medidas que poderiam ter resultados, mas que por não serem implementadas não surtem efeitos.
Relativamente ao financiamento de projectos, Nádia Piazza aponta que a administração do território florestal depende da existência de fundos comunitários, o que indica que não é uma prioridade governativa nacional. É como se Portugal deferisse para a União Europeia o esforço de administrar o seu próprio território, numa auto-demissão das suas responsabilidades básicas.
Para o ano, o orçamento do Ministério da Administração Interna irá aumentar 11% face a 2017, atingindo o valor máximo dos últimos 10 anos, o que foi anunciado após os incêndios de Outubro; no entanto, de notar que as despesas com os incêndios poderão ficar fora da contabilidade do défice para 2018, pois o Comissário Europeu Pierre Moscovici considera tais custos excepcionais, o que contradiz as declarações do Primeiro Ministro, que acha que os incêndios devem ser assumidos pelos portugueses como uma situação normal – subentende-se então que esta crença do Primeiro Ministro é a justificação do aumento de investimento nos hopitais de Coimbra, discutido acima.
Dada a importância que o governo associou ao défice para demonstrar a sua boa gestão do país, dá jeito haver estas tragédias, de vez em quando, pois abrem folga nos critérios de contabilização do défice, até porque ninguém liga ao nível da dívida pública. E dá jeito o governo ter uma cassete para Bruxelas e outra para Portugal.