Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Convidada: LUÍSA CORREIA

Pedro Correia, 26.06.17

 

A culpa foi do gato

 

Eu sei que deveria ter falado em francês com os meus filhos quando eram pequenos. Se o francês quase foi para mim uma segunda língua materna, que aprendi muito cedo, no desempenho da minha função de filha de emigrantes no tempo das malas de cartão, eu deveria, chegada ao papel de mãe de família, ter tirado proveito desta condição e ter ensinado os meus filhos a falar francês tornando-os bilingues. Mas não fui capaz. Uma estranha força impeliu-me a só falar com eles em português, como se não fosse natural o uso simultâneo do francês.

Era uma força que me acompanhava desde criança, muito antes do apelo irresistível da terra ter trazido a minha família de volta a Portugal. Bons emigrantes que éramos, não falhávamos as férias grandes, em julho ou agosto e, depois de dois mil quilómetros de estrada, com o banco de trás do Simca 1500 cor de vinho do meu pai todo para mim, chegávamos com as malas cheias de presentes para as tias e para as primas, peças de pano compradas nas Galerias Lafayette para se costurarem os vestidos da moda, lenços de pescoço estampados com a torre Eiffel e o Sacré Coeur, e muitas saudades para matar ao calor do nosso verão algarvio.

Assim que eu punha o pé em Portugal, a minha boca só se abria para falar em português. A passagem da fronteira desligava em mim a língua do país de acolhimento e a única excepção a essa aparente avaria apenas se dava se a conversa fosse com a minha prima mais nova já nascida em terras gaulesas e que, durante muitos anos, embora tudo entendendo, se recusou a pronunciar uma palavra que fosse em português.

Certo dia, a minha prima francesa que não falava em português, brincava no pátio de uma das nossas muitas tias e, sentindo fome, pediu um pedaço de bolo. Du gâteau, pedia ela. E a tia que bem se esforçava por entendê-la, ouvindo várias vezes gâteau, gâteau, lá conseguiu agarrar no gato que andava por ali para o entregar à pequena, certa de que esta queria fazer umas festinhas ao bichano.

A história ainda hoje me faz sorrir e chego a pensar que a tal força que sempre me impeliu a falar por cá exclusivamente em português, o que, reconheço, prejudicou boa parte da minha condição de educadora, deve ter alguma relação com o caso do lanche falhado da minha prima e do tal gato que, claro está, não se chamava bolo.

 

 

Luísa Correia

(blogue À ESQUINA DA TECLA)

17 comentários

Comentar post