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Delito de Opinião

Convidada: FÁTIMA MOURA

Pedro Correia, 14.03.18

 

Cozinha e criação - imitar, adaptar e criar

 

Ao longo da história de algumas culturas encontramos sempre determinados períodos em que a cozinha é espectáculo para as elites e resulta de um verdadeiro processo criativo, quer a nível de técnicas quer de conceitos.

Na Roma clássica, as aves que, quais matrioskas, saíam a voar de dentro umas das outras para, no final, comerem ao vivo, e para gáudio dos banqueteadores, uma enguia-eléctrica, ou a vitela que encerrava um porco, um cordeiro, uma galinha, um coelho e um rato, os de fora devidamente cozinhados, os de dentro ainda vivos. Uns séculos mais tarde, foi a vez da pastelaria produzir verdadeiras instalações pelas mãos de Carême, cujas pièces montées eram obras de arte que pareceria iconoclasta destruir para comer.

No fim do século XX, assistimos a nova emergência da cozinha como processo criativo artístico com o aparecimento da cozinha tecno-emocional, pela mão de Ferran Adrià e da escola espanhola. O espectáculo torna-se experiência, aproxima-se do comedor e populariza-se. A criatividade situa-se ao mais elevado nível, o da criação de novos conceitos e de técnicas originais. Esta cozinha influenciou a emergência da cozinha portuguesa contemporânea e, como passou a ser ensinada nas escolas de hotelaria, continua ainda hoje a influenciá-la. A semelhança dos produtos portugueses e espanhóis, e até de inúmeros pratos e formas de confecção, terá sido relevante nessa influência, facilitando o trabalho aos cozinheiros lusos, mas embaçando-lhes também a criatividade.

Podemos considerar a existência de vários níveis de criatividade na cozinha.

As cozinhas regionais e tradicionais, áreas em que os cozinheiros se limitam a reproduzir as receitas, são as consideradas menos criativas e os únicos cambiantes que as podem elevar são os elementos de amor e paixão usados pelo cozinheiro na sua produção. No início do século XXI, os cozinheiros reproduziam frequentemente o estribilho da cozinha feita com paixão como o «segredo» do seu trabalho.

 

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 Bacalhau à Brás recriado

 

Em Portugal, podemos marcar o início da vontade de uma cozinha contemporânea criativa nos princípios de 1990, com quatro cozinheiros: Joaquim Figueiredo, Vítor Sobral, Fausto Airoldi e Miguel Castro e Silva. Os portugueses seguiram de perto o movimento da cozinha espanhola, por exemplo na introdução de algumas modificações estéticas ou a nível das texturas em pratos tradicionais. No restaurante Cais da Avenida, actual Adlib, Vítor Sobral trouxe-nos uma nova aproximação à cozinha tradicional portuguesa dando-lhe o estatuto de fine dining. Assim, a cabidela era apresentada em porções individuais, no interior de pequenos embrulhos individuais. Airoldi fez uma cabidela de pato com geleia de moscatel e serviu-a num copo de Martini. O «à Brás» do bacalhau transformou-se num modo de confecção, sendo o peixe substituído, por exemplo, por frango ou por legumes (Fausto Airoldi). A alheira ganhou um recheio de bacalhau ou de vegetais. Estas micro-adaptações dos pratos tradicionais transportam-nos para um nível mais elevado da reflexão através da introdução de um qualquer twist, seja na apresentação, seja na confeção. Estes twists ainda continuam a praticar-se largamente nos dias de hoje: ao rissol junta-se-lhe o ingrediente que estiver na moda, seja malagueta, ou melhor ainda, sriracha, o recheio de sapateira ganha algas, e a salada de polvo adorna-se de kimchi (exemplos retirados da actual ementa do Bairro do Avillez). Estamos num nível de criatividade ainda básico, mas que já implica reflexão.

 

Num terceiro nível deste processo situa-se a criação de uma receita, seja ela baseada noutra já existente na cozinha tradicional ou contemporânea, seja ela original. No exemplo do primeiro caso, a receita diz-se desconstruída, uma vez que se pretende manter os sabores, mas recorrendo a outras técnicas e até a outros produtos. O inventor da desconstrução foi Adrià com a sua tortilha, processo que aplicou também ao gaspacho e a inúmeros pratos clássicos. Como pressuposto da eficácia deste método, o comedor tem de conhecer o prato original, caso contrário perde-se o objectivo. Exemplo do primeiro caso, temos o “bacalhau à Brás do Flores”, do chef Bruno Rocha (2016), em que o bacalhau surge em posta com batata palha, azeitona desidratada, ou o de João Rodrigues (2016), o mesmo bacalhau apresentado como uma emulsão de sames e línguas de bacalhau, com a gema panada com pó de azeitona, mais uma vez a batata palha a surgir na versão original. «Bica, cheirinho, guardanapo e sombrinha» é um exemplo do segundo caso, uma receita original e irreverente para o fim da refeição. O seu autor é Aimé Barroyer (Tavares, 2011): a bica como parfait de café, a aguardente em espuma, o guardanapo como bolo com este nome e um cone de chocolate a relembrar a sombrinha da Regina.

 

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 Sound of the Sea: visão, ouvido, paladar e tacto

 

Num nível superior de criatividade, encontra-se o processo que implica a criação de novas técnicas, ou a apropriação de técnicas só usadas noutras áreas, e de novos conceitos. A cozinha tecno-emocional criou uma parafernália de aparelhos (ver aqui) que, por sua vez, possibilitaram a aplicação de conceitos originais, que permitem abrir o caminho a uma infinidade de pratos, revolucionando a cozinha. Entre estes, surgiu, por exemplo, o conceito de que a cozinha é uma experiência completa para todos os sentidos (o prato Sound of The Sea, do inglês Heston Blummenthal, foi, em 2007, no Fat Duck, um dos primeiros a contemplar a visão, o ouvido, o paladar, e, se quisermos, o tacto).

Algumas dessas técnicas e desses aparelhos continuarão a ser usados durante muito tempo, assim como permanecerá a ânsia de conceptualizar a cozinha.

Entretanto, no princípio do século XXI, parte do mundo, onde se incluía Portugal, limitava-se a adaptar ou simplesmente a copiar a cozinha espanhola.

Da cozinha tecno-emocional ficou-nos na massa do sangue o conceito da refeição enquanto experiência e a sua vocação de surpreender. Anteriormente, frequentávamos os restaurantes em função dos pratos que já conhecíamos e de que nos tornáramos apreciadores, ansiando por que não houvesse surpresas, que significariam a supressão desses pratos ou a sua alteração, sempre uma péssima ideia.

Ainda me lembro com grande desgosto do dia em que, no restaurante onde eu comia as minhas costeletas de borrego favoritas, me «surpreenderam» substituindo o esparregado por salada.

Hoje, a ideia da cozinha-espectáculo tem vindo a desvanecer-se com a perda de força da cozinha tecno-emocional, substituída pelo minimalismo naturalista da cozinha nórdica. Contudo, permanece a necessidade que o comensal tem de continuar a ser surpreendido, apesar de hoje, por influência desse minimalismo, os pratos terem menos ingredientes, serem mais simples em termos de técnicas e com menos «efeitos especiais». Continuamos a querer cozinhas e ingredientes exóticos e passam pela moda os peruanos e os coreanos. Entregamo-nos nas mãos do chef, para que este escolha por nós e nos surpreenda. Queremos menus de degustação, em que tudo está escolhido por outros, até a conjugação com os vinhos. O cliente não tem escolha senão comer e falar. Falar do que se comeu, colocar fotos no Instagram, comer pratos que possam originar bons momentos instagramáveis, razão que leva a que o processo criativo, mesmo o mais básico, continue a virar-se para a estética do prato.

 

Porém, hoje começam a surgir em Portugal dois movimentos fortes. Um, de reforço das cozinhas regionais, enriquecidas com ingredientes de melhor qualidade. Outro, nas grandes cidades, capitaneado pelos novos chefs que trabalham sobre os nossos melhores produtos, tentando afastar-se o menos possível deles e construindo pratos com os nossos sabores, não copiando o que vem de fora, mas usando a sua criatividade. Penso que o caminho está nestas duas tendências.

 

Fátima Moura

(blogue CONVERSAS À MESA)

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