Convidada: DANIELA MAJOR
Da Resistência e da Consolação
I.
Numa conferência recente no Nexus Institute[1], disponível no youtube, George Steiner questiona a validade das Humanidades. Por Humanidades, ele compreende não só o estudo académico da História, Filosofia, Línguas ou Religião, mas também a própria produção artística e literária. As Humanidades caminham então neste limbo: a criação de algo e o seu estudo.
No campo académico, Steiner identifica vários problemas com o estudo das Humanidades, e com a forma como elas são abordadas nas Universidades. Ele exige um maior rigor na selecção dos estudantes, e uma reforma dos currículos para incluir campos que deviam conviver com as Humanidades como a matemática e a arquitectura. Estas resoluções enquadram-se no âmbito de uma reflexão mais alargada sobre o papel das Universidades nos dias de hoje. Não estou agora tão interessada em discutir esta questão pois algumas das premissas de Steiner parecem-me exageradas. Ele tem sobretudo em conta universidades privadas que se encontram no top dos rankings mundiais e cuja comparação com todas as outras universidades só funciona, em consequência, até um determinado ponto.
II.
O problema da validade e utilidade das Humanidades é mais interessante até do ponto de vista do pensamento de Steiner. É uma questão que ele coloca há anos. A formulação é bem conhecida, e está presente na frase de Adorno: “não pode haver poesia depois de Auschwitz”. Em muitos aspectos, Steiner passou grande da sua vida académica a tentar aferir a veracidade desta afirmação.
Gieseking que tocava Debussy enquanto se conseguia ouvir, na sala de concertos, os gritos das pessoas que estavam nos comboios para Dachau. O jardim de Goethe que quase faz fronteira com Buchenwald. Os intelectuais e artistas que se colocaram, abertamente, orgulhosamente, do lado de Hitler e de Mussolini. É bem possível que Auschwitz tenha destruído uma certa ideia das Humanidades. A partir da Revolução Francesa, passou-se a acreditar que a concretização da cidadania, e a felicidade dos povos que daí adviria, só poderia ser conseguida através da educação. Reduzindo esta ideia ao mais básico: só é cidadão quem consegue ler, porque a leitura nos dá poder. O poder do conhecimento, o poder do espírito crítico. A crença no progresso esbate-se no século XX. A crença na tríade educação-felicidade-cidadania parece sair derrotada. O século XX não foi feliz nem particularmente cívico. Pior: foi profundamente infeliz enquanto foi mais letrado e alfabetizado do que todos os outros séculos. O século onde mais pessoas leram e onde os livros eram mais baratos e acessíveis foi também o século dos campos de extermínio e dos gulags.
III.
Neste sentido, seria relevante olhar para aqueles campos que andam na fronteira entre as Humanidades e as Ciências Sociais: a História, a Antropologia, a Sociologia, a Ciência Política. Estas disciplinas têm por ambição a explicação e interpretação da realidade, muitas vezes com a expectativa de conseguir prevenir erros do passado. Aquando da eleição de Trump, foram reavivados textos conhecidos sobre as características do Fascismo. A História tem por objectivo, adicionalmente, o questionamento e a preservação da memória e de identidades, sejam elas regionais, nacionais, civilizacionais ou culturais. A sociologia e a antropologia têm por objectivo a explicação de determinados comportamentos sociais. Todas estas ambições encontram correlações com o poder político. Estudar os processos democráticos em Portugal ou na Europa do Sul, olhar para um mapa de eleições do século XIX, estudar o Iluminismo, isto é, a origem da Modernidade e do discurso político moderno, ajuda-nos a perceber, sem dúvida, o que fomos e o que somos, e os comportamentos que assumimos perante a sociedade e perante a política na sua forma mais pura.
IV.
E contudo: para quê? Os historiadores, por muito que se esforçassem, não conseguiram evitar a eleição de Trump. Nem a literatura o conseguiu fazer. A História demonstra o perigo da emoção desenfreada instilada no discurso político. Demonstra o perigo de se brincar com factos, de se espalhar mentiras, das teorias da conspiração. A literatura faz pouco dos tiranos. E contudo, verificamos que todas estas disciplinas, todas as Humanidades, apesar da sua capacidade criativa, têm uma função apenas reactiva, reaccionária, no verdadeiro sentido do termo. Não foram factos que impediram o Brexit ou Trump. Um historiador podia ter-se sentado (mas sentou-se?) a explicar, reparem, que a União Europeia é um fenómeno histórico e a paz alcançada no Continente Europeu é algo absolutamente inédito. Mas será que isso teria feito diferença? Será que ter Umberto Eco a explicar as características do fascismo fez alguma diferença?
V.
And yet...
Após os atentados ao Charlie Hebdo, o Tratado sobre a Tolerância de Voltaire, esgotou. Historiadores juntaram-se em livros e artigos para explicar a importância do riso e da sátira, fazendo questão de reafirmar, perante a barbárie, que nada disto é novo. Há sempre um tirano que pretende, em nome de qualquer coisa, matar aquilo que nos é essencial: a liberdade. E foram também os historiadores, cientistas sociais e políticos, e alguns escritores, como Salman Rushdie, a lembrar que, apesar de tudo, os livros e as ideias circulam. E a explicar, a não deixar esquecer, que há algo de muito, muito positivo na sátira, no questionamento de dogmas, de preconceitos, no combate à infâmia. E que o sistema democrático em que nos inserimos, regidos, em última análise, por Declarações de Direitos que nos são inalienáveis, foi conseguido e alcançado com muito suor, sangue, e lágrimas. Mas cá estamos, cá continuamos.
VI.
E enquanto eles não são alcançados? Ou o que acontece quando eles são alcançados mas são postos em perigo?
George Steiner dá uma resposta a isso, uma resposta ao mesmo problema que coloca. Numa longa entrevista a uma televisão holandesa, também online no youtube, com o título apropriado de Beauty and Consolation[2], Steiner conta a história de Boris Pasternak. Antes do Doutor Jivago, Pasternak traduziu os poemas de Shakespeare para russo – por sinal, Moscovo vai ter uma estátua de Shakespeare[3]. Em 1937, Pasternak estava na conferência dos escritores soviéticos. Com ele estavam 2000 pessoas. Nas palavras de Steiner, 37 foi um dos piores anos, “one disappeared like flies every day”. A Pasternak foi dito que se discursasse, iria ser preso. E preso seria se não discursasse. Ao terceiro e último dia, os amigos de Pasternak disseram-lhe, em desespero, que ele ia ser preso de qualquer forma. Ao menos que dissesse algo a que eles se pudessem agarrar, depois. E durante a conferência, Pasternak levanta-se e profere um número. 30. E, segundo Steiner, ergueram-se 2000 pessoas e declamaram o soneto correspondente. When to the sessions of sweet silent thought / I summon remembrance of things past… um soneto de Shakespeare sobre a memória. Em português, na extraordinária tradução de Graça Moura, começa como, Quando em meu mudo e doce pensamento / chamo à lembrança as coisas que passaram…. As 2000 pessoas recitaram-no em russo, usando a tradução de Pasternak. Steiner retira a óbvia conclusão: “it said everything. You can’t touch us. You can’t destroy Shakespeare. You can’t destroy the Russian language. You can’t destroy the fact that we know by heart what Pasternak has given us”.
Pasternak não é preso e vive para escrever Doutor Jivago.
VII.
Citando Steiner novamente, no vídeo já referenciado, “what we have in us they can’t take away from you.” O estudioso do Talmud que sabe de cor os cinco livros da Torah e que no campo de concentração diz às pessoas para lhe perguntarem por passagens quando for necessário (ou essencial, quando for essencial). Braudel, no campo de prisoneiros de guerra onde esteve preso, reúne as notas para o que vai ser La Méditerranée et le Monde Méditerranéen, um dos mais importantes livros de História do século XX.
As Humanidades servem para a preservação da memória, das identidades, das ideias. Não explicam apenas o mundo e os processos de formação sociais, políticos, económicos. São formas de resistência – daí serem reaccionárias. Elas pretendem reagir à mentira, à manipulação e, em última análise, à tirania. O facto de serem elas próprias objecto frequente de manipulação, o facto de muitos supostos humanistas, escritores, artistas, intelectuais, se colocarem do lado errado, não apaga a extrema necessidade, a extrema urgência da sua existência. “What we have in us they can’t take away from you”.
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[1] https://www.youtube.com/watch?v=L-WecwvZZzk
[2] https://www.youtube.com/watch?v=3xUzVfxwm_k
[3] https://themoscowtimes.com/news/shakespeare-59254
Daniela Major
(blogue AVENTAR)