Convidada: CRISTINA TORRÃO
Lendas e mitos
Lendas, mitos e milagres fazem parte da cultura e da identidade de um povo. Durante muito tempo, quando o estudo da História não possuía ainda carácter científico, acreditava-se na sua veracidade. Os próprios cronistas medievais difundiram este tipo de narrativas e crenças, pois normalmente escreviam ao serviço do rei ou de algum membro da alta nobreza e havia que exaltar as qualidades do seu patrono, assim como de toda a sua dinastia. Também génios literários como Shakespeare e Camões contribuíram para que muitas inverdades se instalassem no imaginário colectivo. O caso mais relevante será mesmo da responsabilidade do dramaturgo mais famoso do mundo, pelo mito criado à volta do rei inglês Ricardo III, uma das mais maléficas personagens da Literatura e cujo carácter tem vindo a ser reabilitado pelos historiadores, nas últimas décadas. Embora surgissem, no século XIX, historiadores que deram uma nova dinâmica à investigação histórica (caso de Alexandre Herculano, em Portugal), só a partir do século XX o estudo da História se começou a basear em métodos científicos, tanto no que respeita à datação laboratorial dos achados arqueológicos, como na interpretação crítica de crónicas e outros escritos, baseada na interdisciplinaridade e na verificação exaustiva de factos.
No nosso país, porém, esta evolução foi estrangulada por uma ditadura que perdurou até 1974. O alimentar e o exaltar de certos mitos serviam os propósitos do Estado Novo, nomeadamente, o conferir de uma aura divina, a intervenção da “Mão de Deus”, a certos acontecimentos marcantes do nosso percurso. Esta mentalidade criou raízes profundas no nosso imaginário colectivo e, mesmo depois da Revolução dos Cravos, custou ao Professor José Mattoso impor-se como historiador, ao contrariar, por exemplo, a predestinação divina da formação do reino de Portugal, mostrando que o processo que a ela levou era anterior ao próprio D. Afonso Henriques e se enquadrava perfeitamente na evolução da Reconquista Ibérica.
Infelizmente, ainda hoje os manuais escolares carecem de actualização em muitos aspectos, apesar dos esforços de certos historiadores e investigadores como o Professor Moisés de Lemos Martins da Universidade do Minho, o trio de historiadoras Ana Maria Rodrigues, Manuela Santos Silva e Ana Leal de Faria e a investigadora e docente Marta Araújo da Universidade de Coimbra.
Vem tudo isto a propósito de um poema inserido num livro de leitura obrigatória para o sexto ano de escolaridade (embora na capa do livro esteja a indicação de “leitura obrigatória”, nos sites da Wook e da Bertrand vem com a indicação suplementar: “livro recomendado para o 6º ano de escolaridade, destinado a leitura orientada”, o que causa bastante confusão):
De um lado o chão e a raiz
do outro o mar e o seu cântico.
Era uma vez um país
entre a Espanha e o Atlântico.
Tinha por rei D. Dinis
que gostava de cantar.
Mas o reino era tão pouco
que se pôs a perguntar:
- E se o mar fosse um caminho
deste lado para o outro?
E da flor de verde pinho
das trovas do seu trovar
mandou plantar um pinhal.
Depois a flor foi navio.
E lá se foi Portugal
caravela a navegar.
Manuel Alegre, em ‘As Naus de Verde Pinho’.
Não contesto a sua beleza, nem a sua qualidade literária, e respeito muito o seu autor, recente vencedor do Prémio Camões, mas não posso deixar de referir que este poema contém duas falsidades.
Em primeiro lugar, D. Dinis não mandou plantar o pinhal de Leiria, quando muito, mandou substituir o pinheiro manso pelo bravo, que cresce mais depressa, tentando assim colmatar a falta de madeira, consumida em quantidades exorbitantes na época medieval, muito antes da febre das caravelas. A madeira usava-se na construção de travejamentos, tectos, soalhos, móveis, utensílios domésticos, estábulos, adegas, espigueiros, moinhos e aprestos agrícolas (desde forquilhas, ao carro e ao arado) e era ainda o principal combustível, já que, sem lenha, não havia pão, alimentos cozinhados, nem um mínimo de conforto no Inverno.
Como se sabe, os pinhais travam igualmente o avanço da areia das praias, permitindo, naquela época, ganhar-se mais terrenos para a agricultura, por isso se pensa que D. Dinis terá ordenado a substituição dos pinheiros em várias partes do reino. O pinhal de Leiria ficaria como símbolo desta política talvez pela intervenção dos monges cistercienses de Alcobaça no Paul de Ulmar, uma vasta extensão de terrenos pantanosos que se estendia ao longo do rio Lis até à foz. Travadas as areias, os cistercienses transformaram esses terrenos em campos de cultivo, pois eram verdadeiros peritos em abrir, valar e enxugar pântanos.
Em segundo lugar, D. Dinis podia ser muita coisa (e era: um excelente poeta, político, diplomata e legislador), mas não era adivinho. E, embora os pinheiros bravos tivessem dado muito jeito na construção das caravelas, ele, que morreu cerca de cem anos antes da conquista de Ceuta, não previu os Descobrimentos!
O historiador J. A. Sotto Mayor Pizarro, autor da biografia de D. Dinis (Temas e Debates 2008), insurge-se contra esta “fama”, da qual o Rei Lavrador não se livra, muito alimentada pelo Estado Novo, a fim de conferir predestinação divina aos Descobrimentos portugueses. Cito da página 263 da referida obra:
“Ainda dos autores quinhentistas uma breve referência a Pedro de Mariz (…), porque me parece o responsável pelo tão decantado mito do Pinhal de Leiria. Com efeito, creio que foi o primeiro autor que valorizou a sua importância e, o que é mais, dando à acção dionisina contornos premonitórios:
«Mandou plantar o grande Pinhal de Leiria, sem o qual era impossível poder-se conservar a navegação da Índia (…). Pelo que não me parece sem mistério, inspirar Deus no coração deste Rei, que tão de antemão desse princípio a tamanha coisa.»”
Sotto Mayor Pizarro volta à carga na página 333:
“Mas se concordo inteiramente com aquele cognome [Rei Poeta], não posso deixar de manifestar o meu mais veemente desacordo - quase diria indignação - pelo de rei Lavrador. Aliás, creio que nenhum outro monarca português foi tão injustiçado por um cognome como D. Dinis, amarrado, é o termo, durante gerações ao malfadado pinhal de Leiria.”
Sei que, no caso de ‘As Naus de Verde Pinho’ (o próprio título dá continuação ao mito), se trata de uma obra literária, com lugar para a imaginação. Porém, tratando-se de um livro aconselhado para o sexto ano de escolaridade, num altura em que se empreendem esforços para se corrigirem erros do passado, apetece-me dizer que, assim, não passamos da cepa torta!
Cristina Torrão
(blogue ANDANÇAS MEDIEVAIS)