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Delito de Opinião

Convidada: CÁTIA MADEIRA

Pedro Correia, 06.09.17

 

Não é feliz? Ai que horror!

  

Vivemos numa espécie de Síndrome de Felicidade, em que o êxtase com o que somos tem de estar sempre num qualquer pináculo de satisfação que pouco se entende.

Quando era miúda não havia redes sociais. Quando só tínhamos quatro canais e a TV por cabo era um privilégio de muito poucos, nesse tempo não se falava de felicidade. Não havia questionários com o nível de felicidade. A publicidade não vendia a bendita de forma tão explicita e nós também não nos preocupávamos tanto com ela.

A vida vivia-se com o que existia. Todos sabiam que havia momentos do “tem de ser”, em que a felicidade está tudo menos presente; os momentos de castigo, os de insatisfação, os de inveja, os de ciúme, os de levar uma lambada na cara e engolir o choro acompanhado de lágrimas fingindo não ter sentido nada. Depois existiam os momentos em que estávamos contentes.

Hoje a felicidade é um objectivo, um projecto, um “goal” (para os que preferem em inglês). Ser feliz é para alguns uma opção, uma escolha. A mim parece-me que aquilo que me tentam fazer assimilar se parece cada vez mais uma obrigação. Sorrir, mesmo em dor.

Parece que todos temos de estar sempre a encontrar motivos para esfregar felicidade em face alheia. Sobrando-nos os momentos do sofrimento colectivo, aqueles em que se colocam sinais de luto no Facebook por conta de uma tragédia nacional. Ou aqueles em que mostramos enraivecidos porque um país alheio escolheu mal o seu presidente.

De resto, tudo no nosso pequeno mundo corre na perfeição, afinal de contas depende apenas das nossas escolhas e da nossa vontade. As restantes frustrações são apenas histórias mal resolvidas.

 

Jamais no tempo de minha mãezinha alguém se lembraria de querer validar a qualidade do valor do leite que vendia pelo nível de felicidade das vacas. Hoje, uma conhecida marca de lacticínios usa exactamente esse rótulo para garantir que o seu produto é o melhor do mercado.

Pergunto-me quem terá feito o questionário às vacas. Penso cá com os meus botões se alguém enviou por e-mail um questionário, ao estilo Marktest, daqueles com mais de 50 perguntas, para que as vacas fizessem uma avaliação ao seu nível de felicidade. Mais uma vez, para quem prefere estrangeirismos, a vaca faria um “assessment”.

A vaca, depois de um dia a dar leite a troco de um fardo de palha, abre o e-mail e depara-se com cinco dezenas de perguntas às quais deve responder de: “mu” a “muuuuuuuuuuuuuuu”, sendo que “mu” corresponde a “discordo completamente” e “muuuuuuuuuuuuuuu” corresponde a “concordo completamente”.

A felicidade serve para vender tudo, até correntes banhadas a ouro com uma pedra pendurada na ponta.

Quando ouço alguém afirmar que a felicidade é uma escolha dou comigo a ruminar: “como será a vida desta pessoa? Que raio de obstáculos terá encontrado?”, é provável que poucos, é possível que nenhuns, ficando no fim da linha a hipótese de ter encontrado uma qualquer espécie de life coach (que são aquelas pessoas que para aí andam a ensinar os outros a viver) que lhe deu a receita mágica.

 

Mas não há nada como olhar para um caso prático. Concordam?

Olhemos então com atenção para a Clotilde Maria.

 

Frase.jpg

 

A Clotilde Maria levanta-se às 5:30 da manhã, come qualquer coisa sem lacticínios e sem glúten. Tira o pijama apesar do frio e veste o equipamento de corrida. Quando saí à rua está um frio de rachar, sente-se tentada a voltar para a cama, mas ontem, sob o sentimento de “motivada” tinha já dito no Facebook que hoje corria logo pela manhã. No fim do seu texto inspiracional estava um #noexcuses.

Ao fim de 3 km já estava arrumada mas castigou o corpo mais um pouco, afinal de contas não se tinha esquecido de ligar a aplicação e podia publicar na sua conta os quilómetros percorridos. No fim, sem estar certa se desmaiaria ou não, publicou o feito. Uma foto do seu relógio xpto para acompanhar. Tirou várias selfies, mas desistiu, em todas estava capaz de vomitar. Assim não seria motivadora. Publicou tudo com um “a sentir-se feliz”, concluindo com um simples #nopainnogain e uma frase “vale tanto a pena começar o dia assim”. Até chegar a casa recebe pelo menos 10 gostos das amigas que a invejam no trabalho, as mesmas que lhe passam o dia a dizer “quem me dera ter coragem”. As que ainda estarão na cama a esta hora.

O dia passa sem nada de bom para contar. Mal viu o filho pequeno que entretanto o marido já deixou no colégio. Não falou com o marido porque este tinha uma reunião cedo e correu para os transportes. O autocarro atrasou-se, o barco esteve em greve e a fila para pedir um café interminável.

Mas chegou ao emprego, ligou o computador, fez 20 gostos nas páginas das amigas e, apesar de estar passada dos carretos, publicou uma imagem retirada do Google onde dizia “a vida é feita de pequenas coisas, aproveita e sê feliz”. Recebeu 100 gostos.

O chefe disse mal do seu trabalho, perdeu dois ficheiros de Excel importantes porque o PC ficou passado, a mãe ligou-lhe a dizer que o pai estava pior, saiu fora de horas do escritório, mais greves, mais autocarros atrasados. Chegou a casa, deu um beijo no filho e foi fazer o jantar. Quando acabou de arranjar tudo para o dia seguinte o filho já tinha adormecido no sofá. Deitou-o e antes de dormir publicou novamente no Facebook: “Ser feliz é a minha escolha, qual é a tua? Boa noite”.

Adormeceu a chorar.

 

Alcançar um momento de júbilo, daqueles que recordamos em velhos, nos serões com amigos, ou já caquéticos no lar, deixou de ser algo que sentimos porque um conjunto de variáveis da vida assim o proporciona. Passou a ser algo que depende inteiramente de nós, independentemente do que a vida nos oferece. Transformou-se num estilo de vida. Uns são budistas, outros são católicos, mil outras religiões e crenças, e depois há os felizes.

Às vezes imagino que quando adormecemos um qualquer neurónio, chefe do gabinete da felicidade, manda chamar todos os outros e, enquanto vira as páginas do seu flipchart, demonstra a evolução que estão a fazer. Ameaça de despedimento os neurónios insatisfeitos e promete promover os que a procuram com verdadeiro empenho.

Há uns meses ouvi uma citação fantástica que sou incapaz de reproduzir mas que, em suma, pretendia transmitir o seguinte: quanto mais perseguimos a felicidade, menos a encontramos. E eu, que escrevo neste blog com nome choninhas, cada vez mais compreendo esta realidade.

A felicidade é um lugar que encontramos a espaços, são momentos, episódios, circunstâncias. A felicidade é a primeira palavra de um filho, uma manhã sem preocupações, uma tarde de sol na praia enquanto os miúdos correm na areia. São coisas pequenas, comuns, que de tão banais parecem poder ser orquestradas, planeadas, mas não podem. A felicidade nasce da espontaneidade do momento e fica gravada na nossa memória.

 

Antes de ir pregar de volta para a minha freguesia, deixo ainda a entrevista feita por um programa alegre à Cláudia Marisa, uma eterna infeliz, só Deus sabe porquê! Já que a apresentadora não entende.

 

Boa tarde a todos, estamos aqui esta tarde para falar com a Dona Cláudia Marisa que nos vem falar um pouco sobre si a propósito de nada, tínhamos de encher o programa com conteúdos.

(risos forçados)

- Boa tarde Cláudia Marisa.

- Boa tarde.

- Então conte-nos um pouco sobre si. É uma mulher feliz?

- Não. Por acaso não sou.

- Não é feliz? Aí que estranho! Mas então porquê?

- Bom, perdi toda a minha família. Os meus pais morreram num acidente de viação e eu fui entregue num orfanato. Quando fiz 18 anos saí e fui trabalhar para ter dinheiro para alugar uma casa. Conheci o meu marido nessa empresa. Casámos. Estávamos felizes...

- Então quer dizer que já foi feliz? Porque não está agora?

- Porque o meu marido teve um acidente de trabalho e morreu.

- Como assim? Conte-nos tudo.

- Deixaram que lhe caíssem em cima várias paletes de latas de salsichas.

- Que horror. Essa empresa funcionava mal em termos de logística.

- Por acaso não. O meu marido não devia estar lá. Descobri depois de ele morrer que me traía com a Jacinta da charcutaria. Estavam a encontrar-se escondidos nesse momento quando as paletes lhes caíram em cima. Ficaram juntos para sempre.

- E depois?

- Depois descobri que estava grávida. Mas perdi o bebé com o stress. Voltei a estar sozinha.

- Mas tem amigos e amigas certamente...

- Não, as pessoas tendem a afastar-se de quem tem muito azar. Gostam mais de pessoas felizes e que atingem objectivos.

- Se calhar a Cláudia Marisa tem pensamentos negativos. Tem, Cláudia, pensamentos negativos? Ou consegue olhar para a frente e ver um futuro brilhante?

- Choro muitas vezes a pensar no que me aconteceu.

- Pois é isso. É isso que impede a sua felicidade. Está tudo na sua mente. Já experimentou mindfullness?

- Não sei o que é. É algum tratamento?

- É um estilo de vida.

- Certo.

- Vai ver que se se encher de força de vontade vai ser feliz.

- Descobri que tenho só tenho seis meses de vida.

- Ora que chatice. E o que é que fez em relação a isso?

- Estou a ser acompanhada por um excelente médico num hospital público.

- Publico, disse?

- Sim.

Hummm. Já experimentou deixar o glúten e os lacticínios?

- Não.

- Pois. Olhe que pode ser isso.

Entretanto alguém fez sinal, o tempo estava a acabar. Terminaram o programa com um “até a amanhã e não se esqueçam de ser felizes”.

As luzes apagaram-se, a Cláudia Marisa voltou para a sua miséria, sobre a qual havia de optar ser feliz. A apresentadora seguiu com os seus compromissos e as suas publicações nas redes sociais; aquelas cujas fotos foram tiradas  sem querer  por um fotógrafo profissional, num momento de profundo júbilo, enquanto corria à beira-mar, ainda maquilhada e com roupa sem um pingo de suor.

 

 

Cátia Madeira

(blogue EM BUSCA DA FELICIDADE)

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