Convidada: ANA CABETE
Cismar
Perdeu-se o cismar.
Activos, produtivos e exaustivos, deixámos de cismar para o céu, cismar à janela, cismar para um livro, cismar ao sol, cismar para dentro.
Ninguém se encarrapita; sofre-se de síndrome vertiginoso e não se olha o Alto; para conhecer os segredos da “máquina do mundo”, basta inclinar a cabeça para o ecrã que jaz nas mãos.
Desapareceram os esgrouviados; civilizadamente inconformados, já se pesquisou tudo e não é um verso que vai ensimesmar ou transviar a estrutura.
Não se cita Camões: “Bem céu fica a terra/ que tem tal estrela”; teme-se a rejeição e espreita-se a SMS da adolescente: “És bué a minha cena!”.
Imagem: fotógrafa Sofia Colvin
Chega de arrecadar; não há cartas de amor ridículas, postalinhos ou seixos do mar para os segredos do baú.
Macambúzios e com tanglomanglo, nunca mais; pílulas de todas as cores para resistir ao “desconcerto”.
Ao demo a cordialidade; esquece-se a origem “cor, cordis” e amarram-se as cordas do coração. O salamaleque, a saudação “a paz esteja convosco”, é para os balconistas das lojas chiques. Muita educação revela insegurança ou, pior, falta de personalidade.
Hoje, sofre-se de burnout, distúrbio psíquico resultante de vertigem, não daquela decorrente do cismar em cima do telhado, mas da vertigem que resulta da velocidade, da entrada abrupta no futuro, sem recolher o que é precioso e ficou retido no passado.