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Delito de Opinião

Convidada: ALEXANDRA MACHADO

Pedro Correia, 08.02.18

 

Deus nos livre das feministas

 

Tentei construir este texto inúmeras vezes na minha mente a caminho do trabalho, nas pausas do trabalho, a caminho de casa, antes de dormir, a sonhar. Tempo para concretizar as frases que se formaram nestes momentos: zero. Receio de o fazer: infinito. Esqueci-me da maior parte dos termos e particularidades que queria abordar e cheguei a pensar que não seria capaz. Detesto falhar prazos, mas detesto ainda mais entregar coisas feitas à pressa e que não são aprovados com distinção pelo meu crivo perfeccionista. Acabei a escrevê-lo no telemóvel enquanto esperava que me tirassem uns tubinhos de sangue para análise. Este texto não tem o patrocínio da CUF, mas quase podia ter.

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Qualquer coisa que se faça/escreva/fale e que use as palavras mulheres ou feminismo está condenada à partida. Há muito preconceito envolvido. Há quem ache disparatado. Desnecessário. Ridículo. Só lê livros escritos por mulheres? Só pode ser louca, histérica. Feminista. Deus nos livre das feministas. Então os homens não merecem ser lidos? Que bonita é a igualdade de géneros!

Vamos por partes: ao longo dos meus anos enquanto leitora, diria que cerca de 90% dos livros que li foram escritos por homens. Porquê? Porque a minha estante era maioritariamente constituída por estes livros. Nunca tive uma biblioteca cheia de livros em casa, os meus pais não tinham hábitos de leitura, e só na faculdade comecei a construir a minha própria biblioteca e a sentir um verdadeiro amor pelos livros. Mais vale tarde do que nunca, não me julguem. Procurei pelos clássicos, li muitas opiniões, formei os meus gostos. Durante muitos séculos, as mulheres poucas e raras vezes se aproximaram de uma pena, pelo que é óbvio que a maioria dos livros, clássicos ou não, que andam nas bocas dos leitores sejam escritos por homens. A tendência tem vindo a mudar, mas há um histórico de peso para equilibrar. No último ano comecei a ganhar uma consciência a respeito desta discrepância porque, de facto, há muitos livros escritos por mulheres para ler. Felizmente, aproximei-me de plataformas que pretendiam enaltecer as mulheres na literatura e esta causa fez-me muito sentido, acreditem que não foi propositado, simplesmente aconteceu e deixou uma forte marca em mim.

Fiz contas à minha estante e assustei-me. Tinha uma base muito fraca para começar o meu caminho. Na Feira do Livro de Lisboa de 2017 mudei radicalmente as minhas escolhas em termos de aquisições e tem sido assim desde então. Tenho muitos e bons livros escritos por homens, lidos e para ler, pelo que há que equilibrá-los com o universo literário feminino. Desde Julho de 2017 que tenho feito óptimas descobertas e tem sido incrível identificar-me com a escrita das mulheres em geral e com algumas autoras em particular. Não me arrependo do caminho que tomei e, para sossegar as almas mais inquietas com as minhas escolhas literárias, posso adiantar que este ano escolhi 10 grandes livros escritos por homens para intercalar com as minhas restantes leituras e estou maravilhada com o primeiro volume destes dez que escolhi.

 

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Voltando então aos preconceitos. Assim que um dos meus primeiros textos (sobre o livro As Coisas Que os Homens Me Explicam, de Rebecca Solnit) recebeu um destaque do Blogs do Sapo, recebi o seguinte email:

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«Ai Alexandra, Alexandra,

Já enjoa este discurso feminista que tenta dar a ideia de que um homem que seja a favor da igualdade deve ser também ele feminista.
O feminismo tornou-se numa espécie de associação a favor dos direitos das mulheres. Têm esse direito, mas não nos venham vender a ideia de que querem igualdade de género. O feminismo não se preocupa minimamente com os direitos dos homens, certo?

O feminismo preocupa-se com o facto de os homens assumirem tradicionalmente profissões de maior risco e por isso terem muito mais acidentes de trabalho? Tenta equilibrar o acesso a essas profissões? Não. É só um exemplo. O feminismo preocupa-se apenas com a parte que prejudica as mulheres. É disso exemplo o acesso a cargos de gestão de topo. Por isso não procuram igualdade de género. Procuram melhorar a posição das mulheres na sociedade. Ponto.

Um beijinho (ou um abraço).»

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Na altura, este senhor andava ainda indignado com a polémica dos cadernos de actividades da Porto Editora e resolveu mandar este email em tom de desabafo (disse ele) porque queria perceber o fenómeno do feminismo. Não considerei, nem considero, o tom deste email como um desabafo, mas adiante. Resumidamente, decidi dar-lhe resposta, ele ainda fez uso de mais alguns lugares comuns para criticar o feminismo durante mais alguns emails (os do primeiro aparentemente não chegavam), mas lá acabámos por concordar que a vertente radical e tóxica do feminismo pode ser tão má como o machismo e cada um foi à sua vida. Apesar deste desfecho, todo aquele episódio mexeu profundamente comigo. Confesso que fiquei receosa, adivinhando que aquele fosse tornar-se o pão nosso de cada dia. Não se tornou. Até à data não voltei a receber mais emails deste género, mas adivinho que depois de ter usado neste texto as palavras “vertente radical e tóxica do feminismo” talvez chegue um ou outro.

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Uma das coisas que soube que queria abordar neste texto, desde o momento em que recebi o convite do Pedro Correia, consiste precisamente na luta frequente que, aparentemente, temos (alguns de nós) de travar à custa de quem deturpa a causa feminista. Deixa-me profundamente triste todo o aproveitamento e radicalização que algumas pessoas, pelo mundo inteiro, associaram ao feminismo. O feminismo é essencial para mudarmos enquanto civilização, mas tem uma tendência auto-destrutiva absurda. Uns lutam para construir, outros para gerar o caos e entropia. Há dias em que não quero ser feminista. Não quero ser feminista nos dias em que há mulheres que se aproveitam de um movimento fundamental, como é o incentivo para que se denunciem comportamentos abusivos e se perca o medo de falar, para denegrir a imagem de alguns homens pelos mais variados motivos. Há histórias ridículas que atingem proporções e consequências demasiado graves para serem tratadas tão levianamente em praça pública. Assisto incrédula ao que se tem vindo a passar, dando voltas e voltas à cabeça numa busca incessante por uma solução que termine com este aproveitamento. Busca utópica, clichê, infantil, bem sei, mas que não me abandona, mesmo nos dias em que não quero ser feminista.

Um dos documentários mais interessantes que assisti sobre feminismo foi She’s Beautiful When She’s Angry (2014) e gostava muito de o recomendar a quem ainda não o viu. Além de conter informação preciosa sobre o movimento feminista nos Estados Unidos na década de 60 e 70, relatada por algumas das intervenientes, mostra como também naquela altura houve dúvidas, erros, lutas inglórias, oportunistas. É deveras importante interiorizar que tudo aquilo que se passou na época e se volta a passar agora faz parte disto, de sermos humanos. Que é natural, que nunca vai ter solução, mas que vale a pena continuar a lutar pela igualdade, por mais que os desvios nos consumam. Lutar lado a lado, mesmo nos dias em que perco a esperança e não quero ser feminista.

 

 

Alexandra Machado

(blogue MAIS MULHERES, POR FAVOR)

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