Contra a corrente
Que interesse pode ter um diário dominado pelo egocentrismo, repleto de banalidades e mexericos? A inutilidade da chamada auto-ficção também parece evidente, sobretudo se o autor tiver existência espectacularmente aborrecida. Apesar disso, estas parecem ser tendências dominantes. Queremos testemunhos literários que nos revelem o espírito da época, mas jamais poderíamos tolerar um verdadeiro exemplo disso, se ele existisse (não imagino que Vergílio Ferreira, se fosse vivo, pudesse hoje publicar obra semelhante a Conta-Corrente, escrita naquele tom e sobre a nossa realidade). A ficção desistiu da fantasia e a crónica tornou-se conformista. Aceitamos sem pestanejar as frases piedosas e os lugares-comuns que protegem os leitores dos factos cruéis no exterior da bolha. O discurso contemporâneo está repleto de ideias confortáveis e sensatas, com auto-censura do resto. Os intolerantes, por outro lado, são implacáveis com as dissidências e preferem a passividade. O previsível está na moda, o que diz muito sobre o mundo contemporâneo. Nas redes sociais, funcionam lindamente as condolências de desconhecidos e a comiseração geral pelas nossas dores, mas as mesmas pessoas que nos desejam as melhoras vão zangar-se imenso se escrevermos uma frase contra a corrente.
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