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Delito de Opinião

Contentor cheio, pratos vazios

Cristina Torrão, 22.06.20

Volle Tonne, Leere Teller.jpg

Não costumo falar aqui dos livros que leio. Para isso, tenho um blogue pessoal. Já abri, porém duas excepções, a propósito de policiais escritos por alemães, mas situados em Portugal e de outro, passado em Hamburgo, mas escrito por um português. Hoje, abro outra excepção para falar desta interessante leitura, pois o tema está relacionado com o meu último postal.

O contentor deste título, que traduzi directamente do alemão, é o do lixo, ou seja, aponta para o contraste do nosso mundo actual: contentores de lixo a abarrotar de comida ainda em condições de ser consumida ao lado de gente a passar fome. E, no entanto, o livro não compara a situação da Europa com a do chamado Terceiro Mundo. Este livro limita-se à Alemanha.

No país considerado o mais rico da Europa, há uma instituição chamada Tafel que tenta recuperar o mais possível do que os supermercados tencionam deitar fora, a fim de o distribuir por pessoas que vivem em condições precárias (normalmente, as pessoas pagam um preço simbólico pelos alimentos, mas, em casos que se justifiquem, eles são gatuitos). Com 940 lojas espalhadas pelo país, a Tafel ajuda a sustentar milhão e meio de pessoas, trabalho só possível com o apoio de 60.000 voluntários.

A Tafel contribui ainda para a preservação do ambiente. Na Alemanha, cerca de 18 milhões de toneladas de alimentos aterram anualmente no lixo. Através de parcerias com supermercados, padarias, mercados grossistas e alguns produtores, esta instituição consegue, ainda assim, recuperar quase 300.000 toneladas de alimentos.

E, no entanto, é criticada. Por um lado, a quantidade de mercadoria resgatada é irrisória, em relação à efectivamente desperdiçada. Por outro, a Tafel é acusada de exercer uma função que compete ao Estado, ou seja, está a tirar-lhe responsabilidades. Por isso mesmo, o seu responsável, Jochen Brühl, publicou este livro. Ele diz que gostaria de salvar muitos mais alimentos, mas que as suas possibilidades estão limitadas. E sugere aos críticos da Tafel que encontrem maneiras de contribuir para que se desperdice menos. Em relação a fazer um trabalho que competiria ao Estado, ele contrapõe que a Tafel não pode pura e simplesmente virar as costas às famílias que dela dependem para sobreviver.

Neste livro, Jochen Brühl reúne uma série de entrevistas que fez, tanto a críticos, como a apoiantes, ou mesmo a beneficiários da instituição. Pelo meio, vai dando sugestões de como se pode diminuir a quantidade de lixo e lutar contra o consumismo. Por exemplo: porque têm as frutas e os legumes de apresentar formas perfeitas no supermercado? Será mesmo necessário termos pão fresco a qualquer hora do dia? Porque deitamos alimentos fora, mal tenha passado a data de validade, sem verificarmos se já estão realmente impróprios para consumo? Na verdade, há produtos que nunca perdem a validade, como o mel, ou a farinha (ou outros em pó, como misturas para pudins); o arroz e as massas são comestíveis muito para além do seu prazo e mesmo iogurtes se podem comer fora da validade, se não tiverem cheiro desagradável, sinais de bolor e a consistência ainda for normal (eu própria já comi muitos iogurtes fora da validade). Jochen Brühl apela ainda para que tenhamos mais cuidado a cozinhar, medido bem as quantidades. Enfim, todos nós poderíamos contribuir para diminuir o consumismo, criando uma sociedade mais justa e preservando o ambiente.

De entre os entrevistados, saliento Marianne Birthler, uma política da Alemanha de Leste que esteve envolvida nas manifestações que fizeram cair o Muro de Berlim. Depois da reunificação, foi Ministra da Educação, da Juventude e do Desporto no Land Brandenburg e, entre 2000 e 2011, encarregada, pelo governo federal, de analisar a documentação da STASI, a polícia política da antiga RDA. Resolvi traduzir uma passagem da sua entrevista que me agradou especialmente:

«Tenho esperança num mundo melhor. Que mais me resta, senão essa esperança? Caso contrário, bem poderíamos desistir de viver. Mas esperança não significa que aquilo que desejo se realize. Isto é um grande mal-entendido. A esperança e as utopias são apenas fontes de energia. Elas não existem para se transformarem em realidade, tal como idealizamos, mas sim para nos motivarem a agir. As pessoas sofrem muitas desilusões, porque pensam que aquilo com que sonham tem de se concretizar. Isto é um disparate. Não é para isso que existem os sonhos. Os sonhos são o empurrão para que dêmos o pontapé de saída».

 

Informação adicional: há cerca de 650.000 pessoas na Alemanha sem habitação; cerca de metade são refugiados, ou pessoas à espera da resposta ao seu pedido de asilo, e vivem em abrigos; contudo, e apesar de haver albergues para sem-abrigo, calcula-se que cerca de 48.000 vivam na rua.

Existe muita pobreza no país considerado o mais rico da Europa.

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