Contagiado pelo vírus do futebol
Ferro Rodrigues
Em política existe uma fronteira muito ténue entre comédia e drama. Talvez por isso seja abusivo concluir que Ferro Rodrigues, segunda figura na hierarquia do Estado português, viveu uma semana dramática. Mas é garantido que nada lhe saiu bem.
Eduardo Luís Barreto Ferro Rodrigues, 71 anos, tem experiência suficiente para saber que a mistura deliberada entre o exercício de funções institucionais e o palco do futebol costuma gerar golos na própria baliza, vitimando políticos em busca de popularidade fácil. Mas o presidente da Assembleia da República não resistiu à deriva populista, preenchendo manchetes à boleia do desporto-rei.
Inebriado não com uma vitória mas com um simples empate –entre as selecções de Portugal e França em Budapeste – Ferro deu ordem de mobilização aos compatriotas para comparecerem em força no jogo seguinte, contra a Bélgica, em Sevilha. Parecendo ignorar factos elementares: o Governo de António Costa preparava-se para fazer marcha-atrás nas medidas de desconfinamento, a Andaluzia é a região da Europa com mais novos casos de infecção por Covid-19 e no estádio sevilhano onde se disputou o jogo só eram permitidos 14 mil espectadores. Não fazia qualquer sentido apelar a deslocações em massa.
Recebeu críticas de diversos quadrantes. Mesmo alguém que foi muito próximo dele no Governo e na cúpula do PS, como o ex-ministro Paulo Pedroso, deixou bem claro o seu repúdio: «Não perde uma ocasião de mostrar ostensivamente a dessintonia entre a liberdade de circulação das altas esferas do Estado e a preocupação da pessoa comum que não pode visitar a avó a Santarém.» E o jornalista da SIC Bento Rodrigues falou por muita gente com estas palavras de revolta: «O apelo da segunda figura do Estado provoca uma profunda náusea em quem, como eu, tem testemunhado a duríssima realidade nos hospitais devido ao impacto directo e indirecto da pandemia.»
Ferro não fez caso. Sexta-feira passada, no alto da tribuna do hemiciclo de São Bento, despediu-se assim dos deputados: «Bom fim de semana a todos. Os que puderem, em Sevilha, claro.» Na mesma sessão, esquecendo-se de que o microfone se mantinha ligado, chamou «gajos»naos deputados do PCP e do Bloco de Esquerda, numa demonstração de que o sentido de Estado por vezes parece rumar a parte incerta.
Teve de ser o Presidente da República a iluminá-lo. Previdente, Marcelo Rebelo de Sousa anunciou que não iria ao futebol devido à emergência sanitária no sul de Espanha e ao facto de quase três milhões de residentes na Área Metropolitana de Lisboa estarem impedidos de fazer deslocações de longo curso entre sexta e segunda-feira.
Só aí o número um do Parlamento terá percebido até que ponto a febre da bola lhe turvara a lucidez. No fim de semana, acabou por trocar a esfuziante Andaluzia pela pacatez do Sotavento algarvio. Fez muito bem: a selecção nacional foi derrotada, Portugal disse adeus ao Campeonato da Europa. Drama e comédia andaram de mãos dadas.
Texto publicado no semanário Novo