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Delito de Opinião

Congelados pelo medo

Paulo Sousa, 25.02.22

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Com a memória fresca da leitura recente da Homenagem à Catalunha de George Orwell, é claramente um mundo diferente este em que vivemos e aquele que em se formaram as brigadas internacionais para ajudar as forças do governo republicano espanhol no combate contra o fascismo.

É claro que também a mecanização e toda a tecnologia de guerra levou a que a sua progressão se tenha tornado muito mais rápida, e assim se tenha tornado obsoleta a manutenção por meses de posições entrincheiradas conforma relata Orwell nesta obra.

Mas mais do que isso não posso deixar de reparar no voluntarismo assente na força das convicções ideológicas e na generosidade que levaram cerca de 40.000 cidadãos, maioritariamente europeus, a abandonar as suas rotinas e a se voluntariar para combater num país dentro do qual nem conseguiam comunicar. Cerca de 10.000 terão morrido ao longo da guerra, tendo muitos deles perecido também em resultado dos conflitos entre os diferentes partidos que combatiam as tropas de Franco. A busca pela pureza dos ideais colocou os partidários de cada uma das principais facções, fossem anarquistas, socialistas, comunistas, mais ou menos marxistas com critérios de distinção que exigiam um bisturi ideológico, uns contra outros. O escritor pertencia a um deles apenas porque eram os que o tinham recebido à chegada.

No relato sobre o inverno passado nas trincheiras entre Huesca e Saragoça sobressaem essencialmente as descrições sobre o frio, o isolamento e o tédio ali passado. Manter o lume acesso exigia deslocações cada vez maiores, chegando ao ponto em que por cada hora de lume acesso eram necessárias três ou mais em busca de material combustível. Chega a ser mais fácil arranjarem-se voluntários para ir à terra de ninguém para recolher lenha, do que para combater. A falta de higiene, os piolhos e os atrasos na alimentação são também referidos no livro.

 

Em oitenta noites, apenas tirei as minhas roupas três vezes, embora conseguisse de tempos a tempos tirar tirá-las durante o dia. Ainda estava demasiado frio para haver piolhos, mas ratazanas e ratos era coisa que não faltava.

 

Depois de ler esta obra e de recuar no tempo pela mão de Orwell, oiço as notícias e fico a saber que estamos todos agradavelmente surpreendidos pelas unânime reacção dos países-membros da EU e até comovidos pelas palavras proferidas pelos seus responsáveis políticos. Não se pode expulsar a Rússia do sistema de pagamentos Swift porque sem o gás que esta fornece poderíamos passar frio, mesmo num inverno que tem sido ameno.

Confesso-me surpreendido por ainda não ter começado a ver molduras azuis e amarelas para sobrepor nas fotos de perfil das redes sociais, porque essa é a arma favorita dos europeus para combater os tiranos. Os mais afoitos e voluntariosos, e que vivem a menos de mil passos da Rua Visconde de Santarém, esses apostam mais no desenho de cartazes para exibição em frente às câmaras de videovigilância da embaixada da Rússia.

Já com milhares de ucranianos deslocados em fuga da guerra, com muitos outros a dormir nas estações de metro, fazendo lembrar os tempos do Blitz sobre Londres, sem podermos saber a dimensão das baixas civis, a pergunta que ouvi numa entrevista a um oficial das Forças Armadas reformado foi sobre quais as linhas vermelhas que a Rússia não poderá pisar. O que é que afinal ainda falta acontecer para que os europeus acordem?

Os políticos estão manietados na exacta proporção da incapacidade dos cidadãos que representam, aceitarem riscos. Os déspotas como Putin e Xi Ji Ping sabem bem disso e isso abre-lhes a porta às suas ambições. O próximo episódio ocorrerá em Taiwan e o melhor mesmo é que os mais corajosos comecem já a preparar os cartazes. A embaixada da China em Portugal fica na Rua de São Caetano.

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