Como evitar a armadilha?
O mundo observado por apenas um individuo é um mundo amputado da contribuição das observações dos outros indivíduos. Por isso, alguém que tenha de avaliar sozinho o que o rodeia, e depois decidida com base no que observou, corre um enorme risco de tomar decisões erradas.
A história da humanidade que antecede o recurso regular ao método científico é uma sequência de decisões baseadas em palpites, instinto e paixões. As grandes figuras da história que antecede a ciência não terão sido mais do que indivíduos que acertaram nos seus palpites, que tinham os instintos apurados ou foram capazes de mobilizar multidões.
A aparente simplicidade de tomar um comprimido que previne uma doença, de assistir em directo ao que decorre no outro lado do mundo, ou noutro planeta, através do écran de um telemóvel, ou ainda de aprender a tocar um instrumento, ou a instalar um ar condicionado através de um canal no YouTube, encerra e exigiu mais entendimento, colaboração e partilha do que qualquer grande feito da antiguidade.
O desenvolvimento, produção e distribuição em tempo recorde de vacinas como as que estão a ser administradas contra a Covid, e que se têm revelado eficazes em controlar esta doença, são mais um exemplo disso mesmo. Temos como adquirida uma capacidade científica e logística impensável há poucos anos e, distraídos, nem reparamos que isso ascende à escala do maravilhoso.
A observação individual da realidade incorre num enorme risco do que pode ser designado por enviesamento cognitivo. A decisão desprovida de método leva a escolhas baseadas em atalhos e a preconceitos a que recorremos sem que disso tenhamos noção. Basta comparar a publicidade de há umas décadas atrás com a actual, e será fácil de entender como os publicitários se tornaram exímios em explorar as nossas limitações. Antes explicava-se e argumentava-se porque é que se devia escolher um produto, mas hoje recorre-se apenas a mensagens garridas, com elementos cativantes, cores fortes, sons apelativos, frases curtas e simples, corpos quase despidos e insinuantes. Perante eles a lógica e o bom senso são facilmente esmagados.
A exploração destes nossos mecanismos é também uma das bases de trabalho dos que designamos por políticos populistas. As mensagens simples, simplistas, as medidas imediatas que não exigem análise nem método, assim como as soluções fáceis que prometem resultados instantâneos, mobilizam mais rápida e facilmente do que as demais.
A exploração destas nossas limitações cognitivas por parte de políticos ávidos de poder, passo a redundância, são um desafio às democracias liberais. Se nos perguntarem qual a maior ameaça a que a democracia portuguesa está sujeita, fácil e rapidamente respondemos que esse risco vem de fora do sistema, mas numa análise mais cuidada ficamos então sem entender o que é que aconteceu para que o sistema, por si só, já esteja em regressão. Quem o diz é o relatório anual publicado pela revista The Economist. De democracia plena em 2019 fomos despromovidos para a classificação de democracia com falhas em 2020.
Alguns dos motivos que levaram a esta regressão estão descritos no referido artigo. Falta, no entanto, abordar a indiferença com que se aceita esta regressão. A já designada crispação de política portuguesa, não é mais que uma tribalização iniciada há uns anos. Entendeu-se ser politicamente interessante queimar pontes, e explorar a ideia de estanquicidade da decência, que existe apenas no nosso lado da barricada. Isso não é mais do que uma exploração de um enviesamento cognitivo do bicho gregário que somos. Somos nós contra eles, e assim torna-se fácil decidir o que está certo e errado. Nesta linha, que procura apenas o beneficio de curto prazo, faz sentido dinamizar a promoção mediática de um javardo, e é a isso que temos assistido.
E como é que se pode ultrapassar esta armadilha?
Em França e na Irlanda foram feitas algumas experiências recorrendo ao que podemos designar como Assembleias de Cidadãos. Um grupo de pessoas, imaginemos uma centena, é escolhido aleatoriamente, com a preocupação que seja representativo da diversidade da sociedade. O grupo é moderado por um orador que define a regras, apresenta e enquadra os temas em debate. Os resultados foram surpreendentes. Cidadãos comuns mostraram ser capazes de entendimentos negociados, cara a cara, sem o anonimato e o ruído das redes sociais. É possível que o estado, em vez de temer os seus cidadãos, possa confiar neles? São os cidadãos suficientemente adultos e capazes para que possam participar nas decisões? E não estamos a falar em democracia directa, estamos sim a procurar alternativas ao retrocesso a que seremos levados se simplesmente encolhermos os ombros perante o que está a acontecer.