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Delito de Opinião

Como era a juventude

Paulo Sousa, 19.09.22

Dizer que Portugal mudou muito nas últimas décadas é uma redundante repetição. Basta abrir um jornal português dos anos 50 ou 60, ou um noticiário num arquivo digital para descobrirmos um país que não conhecemos. Esses registos retratam sempre, ou quase, a vida nos grandes centros, o mundo dos que viviam em frente das objectivas e dos repórteres que lhe davam voz.

Nas terras pequenas o mundo também mudou bastante. Cresci a ouvir histórias contadas pelos mais velhos sobre o seu tempo de juventude, ou de mocidade, como então se dizia.

A juventude dos meus tempos foi bem diferente da desses tempos e foi também diferente da dos jovens de hoje. Comparando com o que acontece hoje, há cinquenta ou sessenta anos nasciam bebés em barda. Também morriam bastantes, mas só os rapazes da minha terra eram suficientes para, com dois ou três anos de diferença, fazerem várias equipas de futebol. Agrupavam-se por território. Os da parte alta da vila, então aldeia, jogavam contra os das ruas centrais e também, à vez, contra os do lado do pinhal. A modalidade não interessava, podia ser futebol, ao pião, assim como à pedrada ou à cachaporra. Em grupos mais pequenos, corria-se acima e abaixo por terrenos cultivados, por pomares e encostas, e competia-se também pelo número de ninhos da passarinhos encontrados. Os ninhos de aves de maior porte, milhafres, corvos, rolas ou pegas-rabudas eram reservados a uma elite que normalmente vivia na periferia e que, por perder menos tempo aos pontapés na bola, se especializava no que, entretanto, se passou a chamar birdwatching. Se bem que, tendo arte para isso, rapidamente eles iam além da observação e, em podendo, capturavam-nos para os criarem, ou simplesmente os ter, em casa.

Às vezes, a miudagem quando apanhava as aves progenitores fora do ninho, colocava as crias dentro de uma pequena gaiola e deixava-a no mesmo sítio. Após a surpresa inicial, os passarinhos novos lá continuavam a ser alimentados através das malhas da rede. Depois, já maiores e mais gordos, seriam apanhados sem se correr o risco de que aprendessem a voar e lá fossem à vida deles. Mas as gaiolas eram escassas e muitos acabavam por se escapar.

Quem sabia a receita, cozinhava numa panela velha uma mistura secreta que incluía a goma que escorre de algumas ameixoeiras e pessegueiros, bocados dos elásticos das fisgas e outros ingredientes desconhecidos por mim. A partir daquela mistela faziam visgo. Com esta cola, capaz de ficar agarrada às mãos durante semanas e que parecia nunca secar, untavam umas pequenas braças de arbusto que colocavam junto a algo que atraísse a passarada. Podia ser uma tigela de água no Verão, um montinho de milho britado ou uma gaiola com as próprias crias lá dentro. Com um pouco de sorte, após três ou quatros insucessos, lá apanhavam um bicho preso pelas patas. Depois era guardado em casa, numa gaiola maior, junto de outros capturados antes.

No meu tempo de garoto, só um primo meu mais velho é que sabia fazer visgo. Cozinhava-o dentro de uma lata vazia. Com o fumo daquele bruxedo mal-cheiroso pintou, numa parede velha, um largo risco negro, que ali ficou até ter sido demolida. Nunca me deixou ir com ele aos pássaros, pois era mais novo e iria espanta-los. Era o que ele me dizia.

Só do lado paterno, o meu pai tinha sete tios. Lembro-me de ele contar, que certa vez uns primos mais velhos tinham alinhavado umas folhas de papel, e alinhavado mesmo com agulha e linha, onde anotavam a localização dos ninhos que tinham encontrado e que iam espreitando até as crias estarem a jeito de serem apanhadas para fazer uma patuscada. Um dia, os mais novos conseguiram surripiar os apontamentos aos mais velhos. Perante a abundância daquela informação “classificada” decidiram antecipar a colheita.  O final do relato deste episódio termina na rampa empedrada com seixos redondos, que na casa dos meus avós dava acesso ao pátio. Ali juntaram toda aquela pardalada, que depois de morta foi depenada e amanhada. Não me lembro se os comiam guisados, mas imagino que sim.

Desses relatos transparecia uma mistura de, arrisco-me a dizer, reflexo antropológico de caça em grupo, de paixão pela beleza daqueles pequenos seres voadores, de partilha exibicionista de conhecimento entre os pares, de busca pelo apuro da nobre arte cinegética e, obviamente, também um complemento de proteínas.

 

Diz-se que o povoado que antecedeu a aldeia que, entretanto, se tornou vila, começou num vale a pouco mais de um quilómetro do actual centro. Aquela zona sempre foi cultivada com novidades e hortícolas várias. É muito fresco todo o ano e graças aos poços que ladeiam o ribeiro que ali passa quando chove, é possível fazer regas até mesmo durante o Verão. Este vale era por isso muito frequentado por texugos, que se alimentavam durante a noite do melhor que havia à disposição. Era uma apoquentação. Não se podia ali ter nada ao ponto de, sempre que necessário, se organizarem umas capturas. A caçada, tal como o bicho, era nocturna e isso fazia a emoção do desafio subir uns furos. Pelo que ouvi, o bicho era esperado à saída da toca, onde se armava um laço. Depois era só esperar em silêncio. O bicho era desconfiado, podia demorar a sair e isso obrigava a uma espera interminável. Por serem muito difíceis de apanhar, só mesmo os mais exímios caçadores eram bem sucedidos. A conquista significava algum sossego nas ervilhas e nas favas de todos os que ali amanhavam alguma coisa e por isso, na madrugada seguinte o bicho era exibido pelas ruas, porta a porta, pendurado num pau, amarrado pelas patas. Em todas as casas de quem já tinha sido roubado pelos texugos, os caçadores recebiam uma moeda. Ou então, um copo de vinho.

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Foto Rafael Coelho de Sousa

Os miúdos de outros tempos só eram atraídos à casa onde moravam, para comer e dormir. Quando muito para evitar umas sovas, que inevitavelmente acabavam por acontecer. Os mais macios também corriam para casa quando alguma rixa lhe corria mal. Os outros desapareciam para as fazendas onde, ágeis e velozes, eram impossíveis de apanhar.

Foi essa geração que preencheu as fileiras da Guerra do Ultramar. Já adultos, com umas toscas e mal escalavradas tatuagens nos bíceps, ouvi-os falar do Tete, do deserto do Namibe, de Nova Lamego e de Teixeira Pinto, com o mesmo desvelo e conhecimento com falavam do Talho Redondo, da Fonte Falsa e das Eiras Novas. Sem o saberem, quando apanhavam bicos-de-lacre, tentilhões e cias, estavam apenas na pré-primária da caça às pacaças, zebras e gazelas com que a vida os haveria de fazer cruzar. Nesses relatos da minha infância também ouvi alguns contarem que também tinham caçado pretos, mas isso agora não se pode dizer.

Antes e depois do serviço militar, o ponto de encontro dessa geração foi sempre nas adegas de uns e de outros, onde o vinho nunca faltava, nem conduto para o ensopar. Nesses anos, alguns mais novos, fundaram o clube de futebol, que oficialmente só foi constituído depois do 25 de Abril. A primeira sede foi num palheiro onde os jogadores se fardavam antes dos jogos de futebol. O primeiro campo, com balizas de madeira caiada de branco, foi num rectângulo de terreno no meio dos pinhais que lhe deram o nome, pois desde então passou a ser o Estádio da Pinhoca.

Nos anos quentes que se seguiram à revolução, o campo de futebol foi alargado à custa dos proprietários vizinhos. Naquele tempo, aquela turba gadelhuda, de voz grossa, de calças à boca de sino e conhecedora das artes da guerra, foi, treino após treino, domingo-de-jogo após domingo-de-jogo, alargando o campo até que este atingisse as medidas oficiais. Em pouco mais de dez anos, aquele rectângulo foi murado e ali foram construídos balneários e bancadas.

O declínio começou com um incêndio já nos anos 90, que fez desaparecer o pinhal e as pinhocas que lhe davam o nome. Depois foram os incomportáveis e crescentes custos das inscrições dos jogadores de todos os escalões na Associação de Futebol. A isso seguiu-se uma mudança da Direcção, que coincidiu com a construção ali mesmo ao lado de um pavilhão municipal, pago com fundos europeus. Tudo junto ditou que o clube desistisse do futebol de 11 e passasse a competir apenas no Futsal. A marca ainda é a mesma, mas os sócios fundadores já quase todos partiram. A sede está forrada com fotos de equipas de muitos escalões e de muitos anos. Há uns tempos mandei imprimir e pendurar na parede as mais antigas de todas. Foram tiradas pelo meu tio e são anteriores à fundação oficial do clube. Retratam as condições em que se jogava. No inverno metade do campo era uma poça única e o resto era apenas lama.

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Foto Rafael Coelho de Sousa

Actualmente o velho campo está abandonado, cheio de erva e sulcado pelos peões dos serôdios dos tunnings.

Em várias dezenas de hectares em seu redor, o pinhal, que depois daquele incêndio, nunca mais voltou a ter pinheiros, vai receber agora um parque solar. O Plano Director Municipal, actualizado há uns dez anos, acode-nos para ordenar o território, para complicar a vida aos proprietários, mas foi incapaz de nos defender daquela agressão estética. É um facto consumado e os eucaliptos já andam a ser derrubados a eito. É claro que todos queremos e precisamos de energia limpa e renovável, mas com tantos milhares de hectares desocupados no interior do país, tinha de ser logo aqui? Serão mais de 20.000 painéis a ocupar mais de 20 hectares e irão preencher totalmente o espaço entre duas povoações.

Há poucas semanas, numa sessão de esclarecimento no Salão Paroquial lá explicaram ao povéu que a proximidade de uma central de transformação da eléctrica nacional, que até pertence a uma nação que não é a nossa, justifica esta localização. Dizem que é a logística e agora já não há nada que se possa fazer.

Eu, que também gostava de ser energeticamente independente, lembrei-me que se fossemos da têmpera daqueles judéus (era assim que se dizia, com acento no é) caçadores de pássaros dos anos 50 e 60, os painéis seriam metodicamente danificados à pedrada, mas como todos só queremos é paz e sossego, nada disso irá acontecer.

Quando eu comecei a sair à noite, ia para o café, nessa altura a sede do clube não era a minha onda, e ficava à espera que os meus amigos e conhecidos aparecessem. O tempo fluía e, entre umas cervejas e umas cigarradas, para quem fumava, lá iam aparecendo uns atrás dos outros. Dali seguíamos para outras paragens. O café era o ponto de encontro e vivia também desse tempo de espera.

Com a massificação dos telemóveis, aquele café deixou de ser ponto de encontro e até já fechou. Agora os encontros da malta nova combinam-se on-line, e é na sede do clube que alguns teimosos insistem em ver a bola depois do treino de Futsal ou do dia de trabalho. Fuma-se na rua, debaixo do toldo.

A miudagem mais nova já não brinca na rua pois passa o tempo livre agarrada aos écrans, e o único pássaro que conhece é o logótipo azul do Twitter.

4 comentários

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    Paulo Sousa 19.09.2022

    As armadilhas feitas de arame de aço de forma curva, eram aqui chamadas de "costelas". O isco eram uns lagartos que se apanhavam dentro das canas do milho, o seu nome técnico é broca do milho. Havias umas maiores para apanhar melros. Podia ter entrado no texto.
    Obrigado Dulce
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    balio 19.09.2022

    uns lagartos que se apanhavam dentro das canas do milho

    Com esses lagartos brincava eu, a pô-los a comerem-se uns aos outros. Punha-os na bordinha de um móvel, em linha reta, uma atrás do outro. Impedia o da frente de fugir, e o de trás apanhava-o pelo rabo e começava a sugar-lhe o sangue. O da frente ficava cada vez mais fraquinho, incapaz de fugir. Depois eu trocava-lhes os papéis, punha o grande e gordo à frente e o pequenino e fraquinho atrás, a sugá-lo. Era de um sadismo...
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    Carlos 19.09.2022

    Além do mais, o balio também é sádico. Bem me parecia...
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